DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 60 1242
Ora, este processo levará sempre à constituição de comunidades políticas de híbrida estrutura, que, por um lado - repete-se -, conservam em grande parte as tradicionais instituições democráticas, mas que, por outro lado, vão adoptando, em dadas emergências, soluções de filiação marxista, numa flagrante contradição de concepções e princípios, que dificilmente poderá deixar de atingir e molestar a integridade moral do «homem novo» - do homem eternamente novo, diremos -, tal como no-lo define a mensagem das Escrituras.
E esta orientação, ciosamente alimentada e incentivada também por negligente concessão e exercício de ilimitada liberdade de expressão do pensamento, tem estado sempre na origem de especiosas e muitas vezes dramáticas questões e controvérsias, ou de simples quezílias, que surgem, a cada passo, no seio dos povos.
E que, se nos seus fundamentos tem já o sinal da contradição, qualquer sistema assim estruturado nunca poderá ser propiciatório de uma construtiva, quão indispensável, unidade de comportamento entre os homens, pelo menos no fundamental, e antes nos levará a todos, inexoravelmente, ao desentendimento e, consequentemente, à mais confrangedora desagregação.
Apesar disso, continua ainda hoje a reincidir-se na prática de ensaiar, de manter e até de pretender impor aos outros esse contraditório estatuto, assente (aliás como na genuína democracia liberal) num sem-número de concepções que se negam, ou de métodos que se excluem e que, afinal, se teima em pretender fazer convergir para o mesmo objectivo, numa confusa encruzilhada de pensamentos e acções díspares, que torna sempre extraordinariamente difícil, se não impossível aos menos dotados ou esclarecidos, a escolha do caminho a seguir na conquista dos fins sociais que todos desejamos, alcançar.
É, de resto, nesta confusão ideológica - diga-se em parêntesis - que vamos encontrar a génese dos sistemas partidários espalhados por grande parte do mundo político, processo de que, noutros tempos, o nosso país também não soube, ou não pôde, libertar-se. E todos nós sabemos de sobejo como a Nação sentiu os efeitos das lutas fratricidas e dos desmandos de toda a espécie que sofreu, durante mais de um século dessa experiência demo-liberal.
Seria, no entanto, pouco inteligente negarmos que o regime liberal, como o Estado socialista e afins, contenha em si virtualidades que de algum modo os possam legitimar ou mesmo levar à realização de barba justiça social.
E, assim, poderia, talvez, considerar-se inglória e estéril a viva resistência que vamos fazendo a semelhantes processos ou formas de governo.
Penso, todavia, que não será com esta simplicidade que o problema se pode resolver.
É hoje axiomático que todas actividade humana útil deve dirigir-se, além do mais, à promoção social dos indivíduos, considerados estes na, sua integridade.
Daí vem como corolário lógico que, para se tomar posição válida oeste .campo, havemos de atender, antes de tudo, a um outro factor que julgamos decisivo - a- verdadeiro natureza do ser humano, realidade insuperável e, nesse caso, elemento suposto imprescindível na construção de todo e qualquer edifício social.
E então vejamos:
Se tomarmos por exactas e suficientes as concepções materialistas da vida; se tivermos como certo que o homem não é mais que um caprichoso aspecto das manifestações da matéria; se aceitarmos que o espírito humano não passa de um efeito ou reflexo de indeterminadas e obscuras reacções da mesma matéria e que, portanto, a essência de um e de outra se identificam e confundem; se, consequentemente, aderirmos à dialéctica materialista de inspiração[...], com as suas famosas leis da identidade dos contrários, da passagem da quantidade à qualidade e da negação da negação, a culminar com a praxis de Marx de origem [...] (perdoem-me VV. Ex.ªs toda esta erudição . . .); se aceitarmos, em suma, que a vida humana se reduz a um simples movimento cíclico e (terreno entre o nascimento e a chamada morto física; se tudo isto pensarmos e com tudo isto nos conformamos, então, sim, até mesmo o estatuto socialista poderá, nesse caso, prover às necessidades do homem assim concebido e realizar satisfatoriamente os seus anseios.
Mas se, ao contrário, se entender que o espírito humano é, na essência, diferente da matéria; se o homem tem na sua origem, ou no seu principio, o Verbo Divino; se é um ser misto «que, pelo corpo, participa do universo material e, pela alma espiritual, do mundo invisível dos puros espíritos»; se Deus existe e o ser humano foi por Ele criado à sua imagem e semelhança, como nos revela e ensina a doutrina cristã; enfim, se cremos verdadeiramente na vida eterna, então é evidente que as regras de convivência social têm necessariamente de divergir daquelas que regulam ou disciplinam o Estado socialista.
É, como vemos, abissal a distância entre as duas concepções de vida: uma, que considera o homem irremediável e materialisticamente voltado para a terra; outra, que o vê de pensamento erguido para o Alto, em demanda de algo que o transcende e se prolonga para além da sua morte física.
E parece que hoje só estas duas atitudes será legítimo considerar: de um lado, a senda materialista; do outro, o caminho do espiritualismo -entre nós o da Revelação -, pois julgo não fazer injúria a ninguém se admitir que a concepção cristã da vida sobreleva ainda no País a qualquer outra, tantas vezes a civilização cristã tem sido invocada nesta sala.
«Ser humano» igual a matéria e espírito, a corpo e alma, no plano da sua criação divina, total e integral, é, pois, concepção seguida pela grande maioria dos Portugueses. E daí a recta conclusão de que o convívio do homem com os outros homens -a vida em sociedade- só conseguirá estabilidade e tenderá para a perfeição se existir o natural equilíbrio nesse mesmo plano entre os dois elementos que o integram e totalmente o realizam.
Mas, como é evidente e já tive o ensejo de dizer noutro lugar, o equilíbrio, neste caso, não consistirá apenas, como poderia supor-se, em os colocar (a matéria e o espírito) no mesmo nível valorativo. O equilíbrio terá de se fazer com vista ao primado do espírito, pois numa civilização, como pretende ser a nossa -cristã pela preponderância de um dos seus elementos constitutivos -, só deve atender-se, no homem, as solicitações de ordem material na medida em que estas sirvam e convenham ao desenvolvimento daquele.
Será esse o limite das humanas ápetências materialistas.
E o Estado não pode, nem deve, alhear-se desta circunstância ao criar e estruturar as suas próprias instituições: é, efectivamente, por esse limite que terá de aferir o digno padrão de vida que todos desejamos alcançar e cuja promoção é da sua inteira e inalienável competência.
Não é, pois, indiferente para uma correcta resolução do problema posto a adopção, no todo ou em parte, de qualquer dos sistemas que vimos analisando e que este ou aquele (simples ou misto) se mostre apto para a prática da justiça social, na esperança de que só com essa simples pratica se atingirá o bem comum.