15 DE MARÇO DE 1985 2375
das, houve alguém que afirmou que nem Salazar se atrevera a mexer nesse regime. Ter-lhe-á faltado coragem para tanto. Mas quem se atreverá a afirmar que um regime democrático funda a sua natureza na anestesia das realidades políticas, sociais e económicas? Tem a fraqueza e a franqueza de as afrontar e enfrentar? Daí lhe nasce a força, porque tem legitimidade democrática, porque actua com o sentido das realidades, porque deve postergar o curto prazo em benefício do médio e do longo prazos, porque, em suma, não deve recusar o sacrifício de pedir sacrifícios se estes são o meio de atingir objectivos de estabilidade e progresso. E quão fácil seria adiar, quão cómodo seria endeusar a utopia, quão leve seria a carga social e política se ao sentido das responsabilidades se substituíssem a demagogia, o eleitoralismo, a defesa cínica dos cidadãos, dizendo-lhes, por exemplo, que os senhorios estão a deixar cair os prédios de podres, ou que os empresários da construção civil não querem construir ou, se constroem, não querem arrendar.
As contradições sociais só podem ser ultrapassadas desde que o Estado tenha um papel fundamental na intervenção no mercado imobiliário habitacional, procurando conciliar a justa retribuição do capital dos investidores com o direito à habitação dos Portugueses. Tal desiderato passa, indiscutivelmente, pela procura de soluções que respondam equilibradamente a uns e a outros, sem se perder de vista que uma política de habitação não se esgota na conciliação daqueles interesses. Pelo contrário, uma política de habitação passa essencialmente por um correcto ordenamento do território, pela revisão dos financiamentos à habitação com as necessárias bonificações, pelo aperfeiçoamento do regime de crédito à promoção habitacional pelos municípios, entidades parapúblicas e de solidariedade social, pela reformulação dos sistemas de crédito às cooperativas e, ainda, pelo apoio à mobilização e infra-estruturação de solos urbanos por parte do poder local.
Só que esta proposta de lei parte de uma realidade, que é, em síntese, a seguinte: desde 1943 que as rendas habitacionais em Lisboa e no Porto estão efectivamente congeladas por efeito da Lei n.º 2030. E desde 1974 que foram suspensas as avaliações fiscais quinquenais para correcção do rendimento ilíquido inscrito na matriz quanto ao resto do País, de que resultou o congelamento de todas as restantes rendas. Uma tal situação não poderia deixar de produzir os efeitos dolorosos que estão à vista. Temos hoje uma carência de algumas centenas de milhares de fogos novos e 400 000 habitações degradadas. E porquê, afinal?
No seu manifesto eleitoral de 1983, o Partido Socialista punha a seguinte questão: « É socialmente justo que os cidadãos tenham de suportar o aumento de todos os preços - dos alimentos, do vestuário, da energia, dos transportes, etc. - menos do preço da habitação?» Daí que o meu partido tenha logo nessa campanha eleitoral apontado, como indispensáveis, algumas medidas, entre as quais a urgente recuperação de habitações antigas e degradadas, a revisão do regime de arrendamento para novos contratos de habitação, a fixação do valor das rendas através de critérios informados por «normas de renda justa» com actualização e, ainda, a criação de esquemas de subsídios à habitação, alimentados, em parte, por uma percentagem sobre o montante da correcção de rendas. Tal proposta já tinha sido consagrada no congresso do PS de 1978 e integra o documento, também do PS, «Portugal - Anos 80».
Tratou-se de um discurso político que nada teve de eleitoralista, mas que disse a verdade aos seus eleitores potenciais, na altura em que era necessário alertá-los para as suas intenções de voto. Não lhes mentiu. E, logo que este Governo de coligação se constituiu, essas medidas foram vertidas no respectivo programa, discutido e aprovado nesta Assembleia. Recordo algumas delas, para avivar a memória daqueles que esqueceram o contrato assumido pelo Governo: «revisão do regime de arrendamento urbano e instituição da renda justa, quer em função do fogo (renda técnica) quer em função do rendimento do agregado familiar (renda social), com subsídio ao diferencial, quando exista, a retirar de um fundo alimentado por um imposto sobre o montante dos aumentos de renda».
Antes de passarmos à análise dos grandes princípios que enformam a proposta de lei n.º 77/III, onde aquelas medidas foram vazadas, convirá ainda fazer uma retrospectiva histórica da habitação em Portugal. Dos cerca de 3 200 000 fogos que hoje temos em Portugal, 25% foram construídos antes de 1919, 20% desde este ano até 1946, 30% entre 1946 e 1971 e 2501o entre 1971 e 1981. Do total de fogos, apenas cerca de um terço foi afectado a arrendamento, o que aliás corresponde à média mais baixa da Europa, onde o stock habitacional arrendado varia entre 40% a 60%, sendo o restante parque habitacional próprio dos proprietários.
Se considerarmos, todavia, a evolução da construção, verificamos que, de 27 193 fogos construídos em 1970, a 14 269 em 1975, a construção atingiu 37 302 em 1981 e 39 790 em 1982, E aqui já podemos constatar um fenómeno que resulta do congelamento das rendas. Daquele total construído, foram arrendados, respectivamente, em Portugal continental e em Lisboa, apenas 11 250 e 1844 em 1970, 6380 e 1622 em 1975 e apenas 531 e 30 em 1981. Esta tendência, aliás, tem vindo a decrescer em proporções alarmantes, designadamente desde 1975, como efeito do congelamento das rendas, por um lado, e por efeito da indisponibilidade de novos fogos para arrendamento, por outro, em virtude dos seguintes factores: inflação galopante, aumento dos custos de produção, taxas de juro e especulação resultantes do próprio congelamento.
Ou seja: não se arrenda, em virtude de os factores que influenciam os novos locatários não serem convidativos, por um lado, e não se constrói pelas mesmas razões. Aliás, é do conhecimento dos Srs. Deputados que existe hoje um stock de algumas dezenas de milhares de fogos novos devolutos, colocados no mercado de compra e venda, mas que continuam indisponibilizados por falta de condições para arrendamento e, ainda, por falta de uma ajustada política de crédito à compra de casa própria. Se levarmos em linha de conta que houve um aumento demográfico significativo em Portugal entre 1970 e 1981, quer por força de retorno de emigrantes, quer por efeito da descolonização, e sabendo que o parque arrendado diminuiu 6% no mesmo período, temos de perguntar-nos: como foi possível chegar a esta situação? Onde se alojaram esses cidadãos? Provavelmente em ilhas e bairros de lata, para além de sobreocupação de habitações no parque arrendado dos principais centros urbanos, sendo 15% em Lisboa e 22% no Porto, para uma taxa de subocupação de 19% em ambas as cidades.