O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

24 DE OUTUBRO DE 1986 43

cão patriótica pelo futuro do seu povo. Foi também um pacificador entre tendências que dificultavam um diálogo profícuo entre os africanos.
Com uma assinalável visão de Estado, Samora Machel fazia uma leitura política da situação em Moçambique, que não se confinava apenas aos limites do seu território, projectando-se, pelo seu pensamento e acção, na África e no mundo. Ele sabia que entre os países ou zonas do Globo por onde passavam reflexos do problema moçambicano, Portugal era decisivo para a estratégia e acção a desenvolver. Nessa perspectiva, cimentou os contactos com o povo português e afirmou-se, como corolário de todo o diálogo estabelecido, como um amigo de Portugal, sempre aberto para considerar e sublinhar tudo o que nos unia.
Foi assim, com um estilo muito próprio e um carisma específico, que o reconheceram como líder africano, que em condições de extrema dificuldade soube, com lucidez, patriotismo e grande coragem, assumir as posições que entendia mais convenientes para o povo moçambicano e para o futuro da República Popular de Moçambique.
Momentos altos da história dos dois povos no pós-25 de Abril foram as visitas efectuadas a Moçambique, em 1981, pelo Presidente da República general Ramalho Eanes e a de retribuição a Portugal por Samora Machel, em 1983. Destes encontros foi possível um melhor conhecimento e entendimento mútuos, que permitiu criar condições para formas novas e diferentes de cooperação.
O mundo esperava que, pelas suas características e condições de diálogo, continuaria a desempenhar, de modo concreto, um papel decisivo para que todo o processo conflitual que se desenvolve em África se atenuasse. Era uma das certezas em que assentava a expectativa num desenvolvimento pacífico da região.
Os seus próprios adversários reconheciam em Samora Machel a têmpera dos políticos persistentes e cientes na justeza dos seus propósitos, no combate ao apartheid e na luta pela emancipação do seu povo, como consagração inequívoca da identidade da nação moçambicana.
Samora Machel morreu. O mundo africano perde uma das suas grandes figuras históricas - um político seriamente empenhado na resolução pacífica da grave situação da África austral; Portugal e os Portugueses perdem, mais que um amigo, um homem que, nas mais diferentes situações, se proeurou empenhar na aproximação entre os dois Estados e os dois povos.
Nesta hora de luto, o Grupo Parlamentar do PRD curva-se perante a sua memória e a recordação que nos deixa. Que o seu exemplo possa fortificar e orientar os seus sucessores a fim de que Moçambique, no conjunto dos povos de língua oficial portuguesa, possa continuar a desempenhar a sua acção marcante, para que um dia a paz nessa região do continente africano seja uma realidade de que Africanos e Portugueses possam vir a beneficiar.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Tengarrinha.

O Sr. José Manuel Tengarrinha (MDP/CDE): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ele foi o último grande lutador nas guerras de libertação das colónias portuguesas. Argúcia de guerrilheiro, coragem e determinação de chefe, chama de patriota, deram-lhe dimensão lendária entre as populações negras oprimidas de Moçambique. Em longas noites africanas, naquelas noites povoadas de bichos e de medos, antes da libertação, assim ouvimos, em tabancas do interior, homens e mulheres amigos falarem dele, pausadamente, serenamente, como de um pai querido, braço a um tempo protector e justiceiro.
Para a unidade de Moçambique independente foi decisiva essa dimensão do líder incontestado. Para a construção do país, desde os fundamentos, a partir das ruínas coloniais, era fonte permanente de energia e esperança. E também insubstituível o seu papel na África austral, para a libertação das populações negras da injustiça, do apartheid, da opressão estrangeira, para a pacificação e o equilíbrio na zona, que acabaria por ser o fim da missão onde perdeu a vida.
Nele confluíam a agudeza da sabedoria popular, a tolerância e paciência do político experiente, a espontaneidade comunicativa, num perfil humano singularíssimo a que ninguém podia ficar indiferente.
Tentava encontrar para o seu país caminhos próprios, tão difíceis de buscar no mundo de hoje, tão difíceis de seguir no continente negro e especialmente nessa parte, de confrontos e polarizações mais violentos. Caminhos próprios que, não se esgotando no pragmatismo, tinham a alimentá-los lições de outros grandes líderes africanos; talvez, antes de todos, Amílcar Cabral, na recusa a importar modelos de desenvolvimento alheios, na compreensão de que as leis da dinâmica social não podem ser definidas por relações de classes e grupos sociais como as que se observam nos países europeus, no reconhecimento de que fora da influência dos dois grandes blocos políticos e militares se desenvolvia um movimento libertador das periferias, que conduzirá a uma nova ordem na relação entre as nações.
Machel, figura na galeria dos grandes líderes africanos, daqueles que foram muito além dos limites da sua nacionalidade, e são acima de tudo heróis da África negra na sua secular luta pela libertação. Lumumba, Mondlane, Cabral, Neto estão ao seu lado, fazendo com o seu sangue nascer novas terras e novos homens - essa sim, a descoberta maior na grande aventura humana.
Mas há também aqui qualquer coisa que lembra maldição antiga, abatida agora e sempre sobre essa terra sofrente. Não é comum o destino desses homens. Liga--se ao sentimento telúrico da raiz do homem e ao mesmo tempo à sua dimensão superior. O seu preço foi as suas vidas, para que desse sacrifício nascesse a liberdade, a justiça, a dignidade do povo africano. E, sobretudo, a dignidade - como Machel gostava de gritar. Nesse jeito tudo se sintetizava: a libertação final da secular opressão, a escravização mais abjecta, a ignomínia sub-humana, os milhares e milhares de escravos vendidos nas rotas atlânticas, as aldeias arrasadas pelas armas, as mulheres e as crianças violadas, a tortura mais cruel, a lágrima da vergonha, do medo, da revolta. Tudo isso Samora Machel queria dizer no grito que continuará a ecoar pelas terras de Moçambique: «Lutemos pela nossa dignidade!» Povo, de facto, digno, sofrendo a perda do pai que deixa um vazio para sempre no seu coração.
Curvemo-nos respeitosamente perante um homem grande. E, com esse respeito, façamos também quanto em nós couber para afastar da África os sofrimentos