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44 I SÉRIE - NÚMERO 3

e os medos, dar-lhe a paz e a justiça que lhe são devidas, restituir a África, finalmente, a sua inteira dignidade, como sonhou Machel.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma declaração de voto, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Alegre.

O Sr. Manuel Alegre (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não me é fácil tomar hoje aqui a palavra para, em nome do Partido Socialista, prestar homenagem à memória do Presidente Samora Machel.
Não posso separar dentro de mim a qualidade de dirigente partidário da de amigo pessoal do Presidente Samora e de alguns dos seus companheiros com ele desaparecidos, em especial o meu muito querido e insubstituível amigo Aquino de Bragança, construtor de sonhos e de pátrias.
Nascido em Goa, moçambicano, Aquino de Bragança era de toda a parte e de lado nenhum, a sua pátria era feita de muitas pátrias, as novas nações africanas que ele ajudou a construir e também o velho Portugal, cuja história ele entendia e amava.

Uma voz do CDS: - Muito bem!

O Orador: - Foram muitos anos de esperanças e lutas partilhadas, de alegrias e lágrimas vividas em comum.
As nossas vidas pessoais misturaram-se como se misturam e confundiram as vidas dos nossos povos.
Samora, Aquino, eram vidas das nossas vidas. Com eles se foi um pouco de nós, os que com eles percorremos os mesmos caminhos, os mesmos exílios, a mesma peregrinação em busca da liberdade perdida ou do país a haver e por fazer.
«Sou de um país que ainda não é» - dizia então o poeta José Craveirinha. O programa de Samora foi o de fazer esse país.
Conheci-o há cerca de vinte anos, em Argel. Poucos sabiam então quem ele era. Nem ele próprio talvez soubesse ainda que viria a ser o líder carismático de um povo em luta. Entrevistei-o para a Voz da Liberdade. E creio ter sido essa a primeira vez que ele se dirigiu directamente aos Portugueses.
Compreendi então que estava perante um novo tipo de líder africano. Não era o intelectual saído das universidades portuguesas, francesas ou americanas. Não era um chefe tribalista ou racista. Era um dirigente formado no próprio processo da luta de libertação. Vinha da escola da guerrilha, do mato, dos riscos e dos sacrifícios compartilhados com o povo. Era - se assim me posso exprimir - um guerrilheiro de perfil aristocrático, um guerreiro antigo e novo, um príncipe natural, um daqueles seres excepcionais que nascem do povo para o povo.
Homem de uma rara intuição e de grande talento, trazia com ele uma cultura nova. Uma cultura que, partindo da africanidade e da fidelidade às raízes, tinha chegado à compreensão do significado nacional e universal do seu combate; e, antes de mais, à consciência de que a luta de libertação era sobretudo um acto de cultura: a reassumpção de uma identidade cultural submersa pelo colonialismo, numa perspectiva de emancipação política, nacional e social. Samora defendia o primado da política sobre o primado das armas e entendia a luta de libertação não como uma luta de pretos contra brancos, nem de Africanos contra Portugueses, mas como um combate contra um sistema de opressão colonial e social que, retirando ao povo moçambicano a sua identidade própria, deformava também a própria identidade do povo português.
O seu combate nunca foi contra Portugal, mas contra o sistema que oprimia simultaneamente, ainda que em condições e sob formas diferentes, o povo moçambicano e o povo português. Teve sempre uma grande preocupação em definir com clareza o inimigo. O inimigo para ele era o sistema colonial, não o povo português, que sempre teve o cuidado de considerar como aliado natural do povo moçambicano.
Tinha também a convicção de que a independência política era inseparável da conquista da independência económica. Daí que a ideia de libertação nacional sempre tenha aparecido associada a uma estratégia de libertação económica e social.
Independência, eis a palavra chave da vida e do combate de Samora Machel. Dar corpo, em todos os sentidos, ao sonho contido no verso de José Craveirinha. Fazer um país. Restituir ao povo de Moçambique a sua dignidade e a sua plena identidade cultural. E assim se tornou o principal símbolo da unidade nacional do povo moçambicano.
Dirigente guerrilheiro, dirigente político fundador e construtor de um país, estadista, líder carismático de um povo, teve a coragem de rever conceitos, de corrigir práticas, de propor novos caminhos da busca incessante de soluções de paz e desenvolvimento para toda a África austral. Desinibidamente, reivindicou Camões e, ao chegar a Portugal, disse que se sentia como na sua própria casa. Chefe de guerra, Samora era essencialmente um homem de paz. Ele queria a paz. Em Moçambique, em toda a África austral. Pela paz, teve a coragem dos acordos de Incomáti. Pela paz, teve a coragem de propor o diálogo e a negociação. Lutou, viveu, morreu pela paz. Pode-se ter concordado ou discordado das suas posições. Mas não se pode negar-lhe a frontalidade, a intuição, a inteligência, o talento, o risco de ser ele próprio até às últimas consequências. Essa - creio - é a lição da sua vida. Essa é a mensagem que pretendeu deixar ao seu povo e a toda a África: a da necessidade de a África ser ela própria e de construir em paz, sem ingerências nem submissões, o seu destino e o seu futuro. Lição de independência política, mensagem de independência de espírito.
Tudo agora será, porventura, mais difícil.
A história tem sido madrasta para os países africanos de expressão portuguesa: Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Agostinho Neto. Agora, Samora Machel.
Sem o Presidente Samora, a África ficou mais pobre. Portugal também. Samora gostava dos Portugueses.
Alguns, cuja situação pessoal não lhes permitiu compreender a inevitabilidade histórica do processo de libertação, continuam a pensar e a agir como se a guerra não tivesse terminado. Lá e cá.
Ë tempo, neste domínio, de fazermos a nossa revolução moral. Tempo de compreender e de ajudar a compreender que Portugal tem de ter uma estratégia nacional ditada pela história, pela cultura, pela sua própria identidade. E que essa estratégia não pode ser outra senão a da amizade e da cooperação fraterna com os governos e os Estados dos novos países africanos de expressão oficial portuguesa. Não apenas em palavras e declarações de intenção, mas na prática; nos factos, na vivência e na convivência. Sem complexos nem