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1548 I SÉRIE - NÚMERO 44

O Sr. Joio Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo: O que mais profundamente marca este debate é o facto de a proposta de lei do Governo ser contestada unanimemente pelas autarquias locais e pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses.
Isto significa que uma lei com as implicações que esta tem no relacionamento inter administrativo, uma lei que deveria ser a matriz do empenhamento de todas as partes no cumprimento da legalidade e na dignificação dos órgãos do Estado, é congeminada pelo Governo por forma considerada inaceitável por uma das partes sua destinatária e, à partida, isto é um factor de tensões e de choques, inadmissível numa questão como esta.
Porque escolheu o Governo este caminho? Porque não era possível outro? Claro que era: aí está o projecto de lei do PCP a demonstrá-lo. O nosso projecto acolhe o essencial das preocupações das autarquias locais, procurando garantir os valores que deverão nortear a configuração e o exercício da tutela. O projecto de lei do PCP garante a transparência, combate o arbítrio, privilegia os critérios da legalidade, assegura a independência das decisões. Tudo o que a proposta de lei do Governo não faz. O que se discute não é, assim, se é precisa ou se é desejável a lei da tutela, discute-se sim o que é a tutela e como é que deve ser configurada para que possa atingir os seus objectivos no respeito da arquitectura constitucional, incluindo o respeito pela autonomia do Poder Local.
É certo que alguém já tentou uma operação de desinformação, pondo a circular no último mês anonimamente boatos sobre inquéritos e inspecções a que estariam sujeitas autarquias locais. Não é difícil descobrir onde é que mora este boateiro anónimo: tem de morar lá, na rua onde se decidem e fazem inspecções, isto não só porque é o único sítio onde pode existir aquele tipo de «informação», mas ainda porque é o único sítio onde pode morar gente interessada em lançar insinuações públicas que atinjam a consideração do Poder Local e a honorabilidade dos autarcas em geral. É isto que se chama jogo sujo.
É preciso combater firmemente a corrupção, o nepotismo, o compadrio? Sem dúvida e da nossa parte, PCP, empenhamo-nos nisso em todos os sítios. E contra todos os agentes.
O debate aqui não é esse. O debate é entre os que defendem que o exercício da tutela deve respeitar a autonomia do Poder Local e os que, como o Governo, querem aproveitar a regulamentação da tutela para encontrar mecanismos de ingerência e controlo nas autarquias.
É entre os que defendem que o exercício da tutela se deve basear em rigorosos critérios de legalidade e os querem, como o Governo, construir mecanismos que permitam a decisão de oportunidade e arbitrária.
É entre os que defendem que a apreciação final dos processos e a decisão de aplicar sanções deve ser feita com independência, por um órgão de soberania não ligado à concreta função administrativa onde se verifica o conflito (isto é, deve ser feita pelos tribunais), e os que, como o Governo, pretendem conservar para si esse «poder poderoso» de decidir administrativamente, naturalmente com base em critérios políticos e mesmo político-partidários, (aparecendo no processo - espantosamente - com o papel simultâneo de interessado, parte, investigador, acusador e juiz).
O debate, Srs. Deputados, divide os que entendem ser imprescindível definir com rigor os modos de exercício da tutela, as obrigações das partes e as circunstancias de aplicação de sanções e os que, como o Governo, preferem a imprecisão e ambiguidade de conceitos e de formulações, imprecisão e ambiguidade que permitem maior arbítrio e maior capacidade de manobra.
Estas são as questões de fundo. Estamos na zona mais delicada das linhas de fronteira entre a administração central e a administração municipal e entre o Governo e o Poder Local. A tutela bem confeccionada pode ser um instrumento de cooperação e defesa da legalidade um instrumento de ingerência.
A Constituição, no artigo 243.º, resolve o essencial da questão.
A tutela é meramente inspectiva, consiste tão só na verificação do cumprimento da legalidade, estando assim vedadas formas de tutela como a directiva, correctiva ou substitutiva, em que o Governo podia dar ordens ou até substituir-se à entidade autárquica na execução de actos concretos.
A tutela é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei - obedece, portanto, ao princípio da tipicidade.
Finalmente, a aplicação das medidas tutelares está sujeita a parecer de um órgão autárquico.
A tutela administrativa não pode, por isso, ser deixada ao arbítrio governamental, basear-se em considerações de oportunidade, ou resultar de formulações imprecisas que conduzam à incerteza e falta de tipicidade no regime da sua aplicação.
A proposta governamental, como muito bem salienta o circunstanciado parecer da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, padece de todos estes vícios.
Não por poucas razões, a ANMP postula a incons-titutionalidade da proposta de lei.
A proposta governamental reserva para o Governo a decisão sobre a decisão de dissolução e sobre a maioria dos casos de perda de mandato.
A proposta governamental insinua a extensão do conceito de tutela para além da tutela inspectiva (é verificar-se a redacção do artigo 2.º, que autonomiza a tutela sobre o funcionamento dos serviços).
A proposta governamental não tipifica os meios da tutela, deixando o seu conteúdo concreto ao arbítrio e às conveniências do Governo (o artigo 3.º limita-se a enunciar os meios de tutela, não regulamenta o seu conteúdo e a sua aplicação).
A proposta governamental quer continuar a configurar o Governador Civil como autoridade de tutela que ele não é e não pode ser. Sr. Ministro, a tutela não é um caso de polícia!
A proposta governamental deixa sem definição minimamente precisa o conceito de ilegalidade grave, p que, combinado com os poderes do Governo na aplicação de sanções, é fonte de instabilidade permanente que só pode aproveitar à manipulação abusiva do exercício da tutela.
A proposta do Governo - é mais uma inconstitucionalidade - institui a inelegibilidade com pena acessória da perda do mandato e da dissolução (o que torna ainda mais vulnerável a posição governamental à acusação, que alguns fazem, de que o Governo também visa autarcas em concreto, agora que nos aproximamos de período eleitoral).