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1272 I SÉRIE - NÚMERO 37

propósito desta matéria, gostaríamos de aproveitar a oportunidade para tecer mais algumas considerações, que servem para reforçar a ideia básica da necessidade da criação de um Conselho Nacional de Ética.
Os debates sobre o direito da pessoa, onde as questões tratadas na presente proposta vão entroncar, continua em aberto, não se encontrando unanimidade sobre o assunto numa sociedade em mudança e em processo de aceleração acentuado.
A problemática enunciada da procriação artificial, da colheita de órgãos e tecidos para enxertos e transplantações e do prolongamento artificial da vida colocam-se, cada vez, com mais acuidade, às nossas sociedades.
Os progressos da engenharia genética, da medicina, da biologia e de outras disciplinas afins levam-nos a um conjunto de reflexões que, sendo disciplinares, extravasam essas sedes técnicas.
A ciência coloca-nos um conjunto de problemas sociais que, numa perspectiva sistemática, não podem ser desligados.
As críticas à ideologia do progresso a todo o custo, as críticas a uma racionalidade instrumental que permita performances científicas de resposta a procuras sociais estão feitas, em nome do humanismo crítico em que a neutralidade científica é apanágio de uma ciência sem consciência, parafraseando uma ideia cara de Edgar Morin.
Vivemos num mundo de amplas possibilidades, numa sociedade aberta, em que o possível não existe só em termos do todo social, residindo também nas amplas possibilidades das ciências, dos estilos e dos modos de vida. Responder e acompanhar o espírito do tempo, sem um mínimo de reflexão sobre esse mesmo espírito, parece perigoso.
Uma concepção de neutralidade face a estas questões poderá significar a vontade do domínio do homem - legítima em certas situações de real «progresso» da humanidade -, mas poderá significar também uma grande inconsciência ou, então, uma consciência cáustica da descida para o inferno.
Hoje, que tanto se fala da desumanização das ciências - e, neste caso particular, das ciências biomédicas -, a procriação artificial e o prolongamento artificial da vida aparecem-nos como questões cruciais desta temática.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: A procriação artificial, na sua componente da inseminação artificial e fecundação in vitro, tem, como aliás refere a proposta de lei do Governo para a Criação do Conselho Nacional de Bioética, «subjacente uma dissuasão física entre o acto sexual e a fecundação», indo «colidir com o processo natural da procriação».
As tecnologias biomédicas permitem hoje a procriação artificial, dada a transformação da estrutura familiar e da forma de sociabilidade entre os dois sexos. A procriação artificial responderá às expectativas de casais que, por motivos vários, não poderão ter filhos, assim como responderá às expectativas daquelas outras mulheres que poderão escolher viver sozinhas sem a mediação masculina para o acto da procriação. A questão diz respeito a todos, homens e mulheres.
Numa altura em que, em geral, se intenta uma desaceleração da taxa de crescimento demográfico, as tecnologias facilitadoras da procriação são, normalmente, vistas com maus olhos, apesar do crescente envelhecimento da estrutura etária nacional e europeia, longe indo os tempos de euforia demográfica da «riqueza das nações». Hoje somos todos mais malthusianos. A procriação artificial dissocia não só o acto sexual da fecundação como desloca o desejo do acto de procriar.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Não é só, no entanto, a procriação artificial que nos coloca problemas de natureza tão complexa. O prolongamento artificial da vida em situação de coma irreversível ou de vida puramente vegetativa, ao pôr «em risco a ordem natural», como refere a proposta de lei do Governo, intercepta problemáticas não menos importantes.
O prolongamento artificial da vida leva-nos à questão das opções a tomar quanto à situação de excepção, de irreversibilidade, com fortes probabilidades de morte eminente.
Discutir esta temática pressupõe a coragem de enfrentar fantasmas, infelizmente bem reais, da nossa cultura mais recente ou do nosso passado mais longínquo. Sabemos hoje que quase todas as sociedades, em todos os tempos, apresentaram um conjunto de mecanismos tendentes à resolução da questão. A legitimação ou não do processo de prolongamento artificial da vida, em determinadas situações, dentro da nossa cultura, tem de enfrentar, antes de tudo, enquadramentos ético-morais, religiosos e ou laicos.
Uma moral religiosa poderá entender esta questão pelo menos a dois níveis: um que diz ser o prolongamento artificial da vida antinatural; outro que se coloca na perspectiva da morte como não possível de escolha individual, que refere o «crime moral» na decisão do não prolongamento artificial da vida - a vida foi-nos dada, não temos, por isso, o direito de a negar.
Em qualquer caso, nenhum discurso poderá reduzir esta problemática a meros esquemas de entendimento e, por muito que custe à vaidade dos homens, não conseguimos produzir conhecimentos para intervenção tecnológica que resolvam a situação.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Erradicar o sofrimento dos nossos horizontes é a pretensão de todos; que isso seja conseguido é outro problema, até porque é aí que se procura legitimar certas utopias totalitárias. Mas tentar defender, como alguém já o fez, o sofrimento e a doença como «possibilidade permanente de ultrapassagem do si--mesmo, como descoberta da liberdade», «como direito de dispor do seu corpo» ou ainda «como instrumento de salvação individual», parece-nos excessivo para as situações limite que são referidas na proposta de lei, porquanto, nesta matéria, consciência e inconsciência não têm limites definidos.
Para terminar, uma referência sobre a colheita de órgãos e de tecidos para enxertos e transplantações, onde a nossa cultura possui um rico manancial de obras de ficção, que nos apresentam cenários de «fabricação do ser humano». Desde a procriação artificial nas suas variadas vertentes até às transplantações e enxertos, é este o mundo, algo macabro, que pretendemos evitar.
Não se trata aqui, no entanto, de discutir monstros frankensteinianos, mas de salvar vidas. Como em todas as grandes questões do foro íntimo, cada um de nós deve ser verdadeiramente soberano. Este direito inalienável à privacidade da consciência de cada um acaba por converter-se num vector adicional de «fecho», de afirmação de preconceitos e de tabus em questões que devem ser desclandestinizadas e analisadas à luz das novas tecnologias, das novas mentalidades e dos novos comportamentos dos cidadãos no colectivo em que se inserem. Eis o paradoxo.