25 DE MAIO DE 1990 2607
Podemos, aliás, distinguir, pelo menos, dois momentos ou duas fases nesses processos: o momento ou a fase de transição ou instauração, que culmina com a consolidação institucional e jurídica do regime democrático, ou seja, quando a ideia e a assumpção prática da democracia se tornam irreversíveis, e o momento ou a fase de aprofundamento da democracia, com a definição completa das formas, das instituições, dos processos, dos meios e dos mecanismos de exercício da democracia, enfim, na resposta à questão «que democracia?» e na interiorização em cada um e em todos de comportamentos e de práticas democráticos.
É este o momento que hoje vivemos.
Se hoje podemos dizer que o regime democrático é algo adquirido e consolidado, mesmo apesar de algumas dúvidas, preocupações e sombras que persistem ou renascem, não podemos, no entanto, dizer que a forma ou as formas de tradução da vontade popular e os níveis e áreas de decisão sejam questões já respondidas, ou, tendo-o sido, que as soluções achadas correspondem a um modelo ideal, e a que modelo ideal, e, para além disso, se correspondem às necessidades e ao sentir do povo que somos, com os valores, as características, os interesses e a nossa própria maneira de ser e de viver.
Com efeito, terão hoje os Portugueses uma noção correcta e completa dos seus direitos democráticos, consagrados constitucionalmente? E, se o têm, conhecem os mecanismos ao seu dispor? E utilizam esses mecanismos? São eles eficazes? Ser democrático e agir democraticamente é, hoje, uma conquista adquirida e afirmada dia a dia pelos Portugueses?
Hoje é um dos momentos de reflectir sobre todas estas questões e de encontrarmos soluções. Nesta sessão legislativa, já houve oportunidades para avançarmos na construção e aprofundamento da democracia portuguesa com as iniciativas legislativas relativas à acção popular e ao direito da petição.
No entanto, o referendo constitui, porventura, o mecanismo democrático mais importante e significativo para equacionar todas estas questões. Com efeito, as actuais democracias ocidentais baseiam-se nos moldes, nas doutrinas e até nos movimentos revolucionários dos últimos três séculos. E, se a concepção da democracia evolui ao longo dos tempos, é legado inegável deste período a ideia de que, em termos institucionais e quanto ao exercício do poder político, este compete aos órgãos representativos, ou seja, de que o poder popular não é exercido directamente pelo povo, mas através dos seus representantes, para os quais, de resto, transfere todo esse poder. Tal é a solução da democracia representativa. No entanto, é legítimo colocar as questões de saber se esse modelo deve ser exclusivo ou se deve ser moderado ou temperado com mecanismos de exercício do poder directo do povo e. nesse caso, como e em que termos.
Por outras palavras, se o referendo é iniciativa exclusiva dos representantes, dos representados ou de ambos e, sendo também dos representados, se o referendo significa revogação ou limitação do mandato dos representantes, ou se, pelo contrário, o exercício exclusivo cabe aos representantes e só estes podem decidir perguntas aos que representam e o que quer que seja. No fundo, saber se, apesar de ser poder derivado, o poder dos representantes é exclusivo ou se eles podem ou não, por iniciativa própria ou não, abdicar das suas competências.
A revisão da Constituição teve como preocupação responder a algumas destas questões, talvez às mais importantes, tendo, aliás, em conta a configuração do sistema e do regime político já anteriormente definido, de cariz semipresidencial, um sistema que, apesar de não atribuir competência executiva ou legislativa própria ao Presidente da República, no entanto, lhe confere uma particular posição de dignidade institucional e de última garantia moral e política do regime.
Assim sendo, limitou-se a iniciativa ao Governo e ao Parlamento, com exclusão deliberada da iniciativa popular e do Presidente da República. Cabe, no entanto, a este a decisão final acerca da realização ou não do referendo, solução que o PRD, como partido que sempre defendeu o acentuar das responsabilidades do Presidente da República, não pode deixar de sublinhar. Mas o facto de se ter excluído a iniciativa popular não deixa de traduzir uma opção importante quanto à natureza do poder dos representantes que, não deixando de ser derivado, constitui, no entanto, uma forma de legitimidade exclusiva de exercê-lo.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Os Grupos Parlamentares do PSD, do PS, do PRD e do CDS apresentaram nos seus projectos de revisão constitucional a figura do referendo, embora em termos diversos, o que suscitou na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional um debate frutuoso, que, nos termos do acordo PS/PSD, acabou por vir a consagrar constitucionalmente a figura do referendo (artigo 118.º da Constituição).
Os termos constitucionais em que o referendo acabou por ser consagrado são, em nossa opinião, os mais adequados, atendendo às dificuldades, mesmo considerando o facto de, nesta matéria, a proposta do PRD ter sido aquela que ia mais longe em termos de previsão concreta daquilo que constitucionalmente devia consagrar, reconhecendo, durante a discussão em sede de comissão, que a sua proposta, nomeadamente em termos de referendo legislativo, envolvia questões melindrosas que poderiam ser prejudiciais, quando estamos a dar os primeiros passos relativamente a esta figura (de uma forma séria) e quando o espectro da sua incorrecta utilização não está completamente afastado do imaginário de todos nós.
A figura do referendo deve ser entendida como forma de aprofundar a própria democracia, como mais um instrumento que é dado ao povo para enriquecer o quadro dos mecanismos da democracia participativa, que, aliás, a nossa Constituição, através da última revisão, não só consagra como valoriza e que a própria Assembleia da República desenvolve, através das iniciativas legislativas, como as que dizem respeito, por exemplo, aos direitos de acção popular e de petição. Pode mesmo parecer, à primeira vista, que este é um dos instrumentos mais genuínos postos à disposição dos cidadãos para a sua participação nas grandes «questões de interesse nacional».
Há, no entanto, limites que devem ser considerados e que têm a ver com o facto de estes mecanismos não poderem ser utilizados em substituição ou em oposição aos mecanismos da própria democracia representativa. O referendo não pode ou não deve aparecer como um instrumento de poder e ou de pressão política ilegítima; antes deve ser utilizado de tal forma que haja consensos sobre a necessidade ou a conveniência de o povo se pronunciar.
O quadro constitucional em que o referendo é considerado indicia, desde logo, as cautelas que são necessárias para não perverter por completo o sentido da complementaridade do instituto do referendo no seu aperfeiçoamento da sociedade democrática, que não pode pôr em