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25 DE MAIO DE 1990 2609

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A Assembleia da República, aquando da última revisão constitucional, operada em 1989, fez consagrar na nossa lei fundamental o referendo a nível nacional, instituto através do qual os cidadãos eleitores podem ser chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta desta Assembleia ou do Governo, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei.
Trata-se de uma das mais relevantes inovações da segunda revisão do texto constitucional. De facto, estamos perante uma importante questão organizatóría que faculta um instrumento de intervenção directa, ou, melhor dizendo, semidirecta, na vida pública.
E cumpre-nos neste momento, enquanto órgão de soberania, dar resposta a um imperativo constitucional, sendo certo que a matéria em apreciação é da exclusiva competência desta Assembleia, como decorre da alínea b) do artigo 167.º da Constituição.
Ora, os projectos de lei sobre os quais recai hoje a nossa atenção relevam ambos da interpretação do artigo 118.º do texto constitucional e, nesta matéria, devemos todos procurar o mais alargado consenso possível quanto às soluções a adoptar, já que se trata de uma experiência constitucional, cujo êxito ou inêxito muito terão a ver com a democracia erigida a partir de 25 de Abril de 1974, com o que reafirmamos a indispensabilidade da mediação dos mecanismos da democracia representativa num Estado moderno e com a nossa concreta escala.
Só que é patente a complementaridade do instituto do referendo e o seu previsível papel de aperfeiçoamento da sociedade democrática, com o pleno respeito pelos órgãos de soberania e pelo estatuto dos partidos políticos.
Daí que se nos afigure impreterível a adopção pela futura lei orgânica do referendo de um conjunto de cautelas, de harmonia com articulado constitucional que «devolve» aos órgãos de soberania um papel fundamentalíssimo.
Dir-se-á que, ao menos em tese, sempre pairará no horizonte um risco de conversão do instituto em instrumento de poder pessoal, de pressão política, ou até de «perversão plebiscitaria».
Como escreveu Maurice Duverger, o referendo «é censurado tradicionalmente em França por se transformar em plebiscito (...) e o risco é real (...)».
Mas, escreve ainda este autor, apesar de tudo, «o referendo apresenta também a grande vantagem de permitir ao conjunto dos cidadãos resolverem, eles próprios, os problemas importantes e evitar que os seus 'representantes' açambarquem todo o poder político».
O instituto do referendo tem sido, assim, preconizado, à luz da teoria constitucional, em nome da lógica democrática.
Se o poder político incumbe ao povo, a este devem pertencer as grandes decisões da vida da comunidade, com o que se justifica o recurso ao instituto em apreço quer no plano da aprovação ou ratificação de leis de grande alcance político e social, quer em matéria de compromissos internacionais, quer ainda no plano da arbitragem de eventuais conflitos entre o legislativo e o executivo.
Ora, o referendo, concebido como mecanismo de democracia semidirecta, não colide com o sistema de governo. Digamos que ele, como escreveu Jorge Miranda, «se enxerta na representação política, nuns casos para corrigir o afastamento entre a vontade manifestada pelos órgãos representativos e as linhas programáticas resultantes das últimas eleições gerais, noutros casos para a inflectir no sentido da vontade actual do eleitorado».
Por outro lado, o referendo constitui um instituto comum no direito comparado. Nascido de dentro da Revolução Francesa, o referendo moderno inspira-se na evocação das democracias antigas e nas ideias de Rousseau. E, num primeiro plano, surge a Suíça, onde, a partir da Constituição de 1848, o mecanismo é utilizado a vários níveis: iniciativa popular, referendo constitucional obrigatório e referendo legislativo prévio e derrogatório.
Após a I Guerra Mundial, espalhou-se em vários países: Alemanha, Áustria, Irlanda, Grécia, Checoslováquia. Sendo de referir a Constituição de Weimar, já aqui referenciada, na qual o instituto se destinava quer à aprovação de normas jurídicas (através do chamado «veto translativo» do Presidente da República) quer à efectivação da responsabilidade política (revogação popular do mandato do Presidente, sob propostas do Parlamento).
E, mais tarde, introduzem o referendo a Itália, a França e a Grã-Bretanha. A Itália, desde a Constituição de 1947, é já tradicionalmente apontada como favorável ao instituto em causa, tendo-o consagrado a título de veto popular resolutivo. Em França, foram aprovadas, por directa votação do povo, as Constituições de 1946 e de 1958 e a prática do referendo é frequente na V República em questões controvertidas como, por exemplo, a da Argélia e a regionalização. Por sua vez, a Inglaterra, «pátria» do parlamentarismo, referendou, em 1975, a adesão ao Mercado Comum. Finalmente em Espanha, após a plebiscitaria experiência franquista, a Constituição democrática de 1977 fixou o instituto de forma alargada à própria iniciativa popular.
No direito português, a ideia do referendo de âmbito nacional aparece, pela primeira vez, em 1873, num projecto de lei de reforma da Carta Constitucional, da autoria de José Luciano de Castro, o qual acabaria por não vingar.
Com a I República, a Constituição de 1911 viria a consagrar, no seu artigo 66.º, n.º 4, o referendo ao nível das «instituições locais administrativas», com remissão para a lei ordinária. Já no consulado de Salazar, Portugal assistiria à experiência «perversa» do «plebiscito nacional» sobre o projecto da Constituição de 1933.
Por último, com a experiência constitucional, aberta pelo 25 de Abril de 1974, a problemática do referendo seria objecto, em sede de elaboração da actual lei fundamental, de propostas partidárias e de profundo debate, ressaltando deste ponto de vista o contributo trazido à Assembleia Constituinte pelo nosso partido, o então PPD.
Contudo, só com a revisão de 1982 a Constituição de 1976 viria a fixar, no artigo 241.º, n.º 3, a possibilidade de serem efectuadas «consultas directas aos cidadãos eleitores» por parte dos órgãos das autarquias locais. Aliás, o consequente processo legislativo acabou por ser desbloqueado, há muito poucos dias, em sede da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, no que se obteve uma aproximação e consenso apreciáveis por parte dos três maiores partidos que compõem esta Câmara.