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I SÉRIE-NÚMERO 84 2764

excessivo e os anos muito poucos para o efeito. Será valorízável uma língua cuja ortografia oficial muda de 20 em 20 anos ou, como agora se admite, de S em S anos?
O que é valorizar uma língua? Na impossibilidade de responder no tempo disponível, limitar-me-ei a dar alguns exemplos do que é desvalorizar uma língua.
É desvalorizar uma língua pretender que ela não tenha capacidade para ser normativizada por dicionários mas apenas por leis, nacionais ou internacionais.

Vozes de alguns deputados do PS: - Muito bem!

O Orador: - É desvalorizar uma língua expô-la a flutuações gráficas que lançam a perturbação nas crianças, nos adolescentes, nos adultos, nos idosos, designadamente nos professores, nos escritores, nos jornalistas, nos dactilógrafos, nos revisores, a todos tomando mais ou menos analfagráficos, sobretudo aos mais cultos ou aos mais ledores.
É desvalorizar uma língua prescindir de instrumentos de diferenciação gráfica aptos, e tendencialmente indispensáveis, à correcta realização e transmissão de diferenciações fónicas.
É desvalorizar uma língua induzir a homonímias artificiais, como «retratar» e «retra(c)tar», porque «retractar» com e é uma coisa e sem e é outra. Estas expressões passam agora a dizer-se da mesma maneira.
É desvalorizar uma língua descurar o risco de homo-fonias indesejáveis [«interceção», «interse(c)ção» e «intercessão»].
É desvalorizar uma língua obliterar a coerência do sistema lexical, escrevendo «Egito» sem p e «egípcio» com ele.

Risos de alguns deputados do PS.

Estes são apenas alguns exemplos, colhidos ao acaso do triste manancial de incongruentes inovações.
É desvalorizar uma língua descaracterizar ou mesmo quebrar elos de referência cultural entre gerações.
É desvalorizar uma língua dificultar e na maioria dos casos impedir, de facto, a reedição de obras publicadas antes de 1994. Sejamos realistas: se a lei for aprovada, as obras que não puderem ser reeditadas sem ser reimpressas não serão reeditadas.
É desvalorizar uma língua violentar ou cercear o direito ao livre uso das capacidades dinâmicas da língua, o respeito devido à integridade estética das criações literárias, que não podem ficar ao arbítrio dos revisores.

Vozes de alguns deputados do PS: - Muito bem!

O Orador: - Seria útil uma natural e consensual uniformização das grafias portuguesa e brasileira da língua portuguesa? Quem o contestaria? Não nos podemos esquecer, porém, que os grandes erros que têm flagelado a Humanidade foram ou são quase sempre ditados pela ilusória procura do óptimo. As tentações totalitárias pagam-se caras!

Vozes de alguns deputados do PS: - Muito bem!

O Orador: - É dado adquirido que, entre as duas normas da língua portuguesa, existem, salutarmente, diferenças semânticas (e, Srs. Deputados, ninguém pensa em fazer um acordo de uniformização semântica!...),
sintácticas, morfológicas, fonéticas (e ninguém pensa em fazer um acordo de unificação fonética!) tal como diferenças prosódicas, que são mais relevantes, do ponto de vista do intercâmbio cultural, do que as dualidades ortográficas. O Acordo não pode utilmente unificar o que, sem separar, a história cultural diferenciou.
Por outro lado, alterando e invertendo o princípio de que a oralidade precede a escrita, e pela primeira vez na história da língua, a instância grafémica condicionaria o modelo fonético. A tendência para o emudecimento das vogais átonas, prescindindo-se do valor diacrítico da consoante dita muda (ou não articulada), alterará, se for legislada, a fisionomia fonética de grande parte dos vocábulos. Se se não indeseja que a ideal identidade entre fonema e grafema seja tendencialmente reproduzida na ortografia, torna-se inconsequente legislar no sentido de promover a desarmonia entre o fonema e a sua representação gráfica. Porque a evolução da língua é essencialmente um fenómeno natural, não pode ser afectada por razões extralinguísticas, como o são as razões políticas que presidiram à preparação e assinatura do Acordo.
O «mérito» político-cultural do Acordo seria o da unificação e decorrente simplificação. Verificada a impossibilidade de a alcançar, as partes contratantes optaram por uma, aliás nem sequer criteriosa, semi-unificação, por uma unificação legal incompleta, por uma unificação legal que comporta dualidades legalmente garantidas. Chamam-lhe «ortografias duplas». Diz-se, e bem, que é uma «unificação em sentido fraco». Mas, se a «unificação em sentido fraco» é aceitável e suficiente, por que não conservar essa outra modalidade de «unificação em sentido fraco» que é a parcial divergência entre a actual ortografia portuguesa e a actual ortografia brasileira? Ou seja: por que não conservar, como ortografias oficiais do português, a portuguesa actual e a brasileira actual?
A unificação com força imperativa geral e universal não é uma imposição técnica. É uma imposição substantiva, pelo menos para os criadores literários. A escrita não constitui apenas notação. É parte essencial da própria língua, é património e capital simbólico. O simples facto de numerosos escritores se recusarem a acatar o vínculo que se lhes pretende impor, por o considerarem inaceitável, prova que está em causa o exercício do direito à liberdade de criação cultural e artística. É manifesto que não se trata de uma questão técnica ou instrumental, mas de uma questão de ordem estética substantiva. A grafia não vale como mera denotação. A grafia também tem conotação.
Objectar-se-á que, tudo bem contabilizado, «Paris vale bem uma missa», ou seja, que o sacrifício dos hábitos, da clareza e das conotações vale bem um vastíssimo mercado livreiro. Nada mais simples para um legislador de mente liberal. Aos escritores portugueses que, por legitimamente ambicionarem maior projecção no Brasil, preferirem a grafia brasileira, deve ser permitido usá-la. Não é por isso que deixaremos de os ler aqui. Aliás, não é por aportuguesarem a grafia brasileira que, dos livros brasileiros, se venderá em Portugal nem um só exemplar a mais. O problema da relativamente forte incomunicação cultural entre Portugal e o Brasil não é - sejamos lúcidos - o das dualidades gráficas. O problema é o das desmotivações comerciais e também o do quase fosso que existe entre nós - entre nós portugueses como entre nós brasileiros - até pela simples inexistência de simples boletins de bibliografia
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A tradição liberal das nossas reformas ortográficas - a de 1911, aliás a única -