932 I SÉRIE - NÚMERO 25
É uma violência que mergulha na crise profunda que abala o Planeta e que se alimenta dos desequilíbrios regionais e sociais e da ruptura ecológica, responsável pelo êxodo de povos que, condenados à desertificação, à fome e à opressão, buscaram e buscam noutras latitudes a sobrevivência, o abrigo e, não raro, a liberdade que agora hipocritamente se lhes nega. Uma violência que da insegurança, do desemprego e da incerteza quanto ao futuro faz bandeira, não para bramir contra as causas da crise, que ignora, mas, antes, para agitar primariamente contra os mais indefesos, aqueles que, porque diferentes, porque não normalizados, se tornam presa fácil e bode expiatório para todos os males.
O racismo e a xenofobia atingem assim, assustadoramente, uma nova dimensão, não só no agravamento e multiplicação das suas acções agressivas mas também na sua própria organização política e expressão eleitoral, o que sucede na Bélgica, em França, na Alemanha, na Aústria, em Itália e em Espanha, mas igualmente em países tradicionalmente considerados tolerantes, como a Suécia e a Dinamarca, que recentemente, em actos de violência de grupo e em eleições, concluíram que não estão imunes ao fascismo e ao racismo e que estes agem articuladamente.
É perante tudo isto, Sr. Presidente, Srs. Deputados, que é útil que, no início deste novo ano, nos questionemos sobre Portugal.
É lugar-comum afirmar-se, porventura para descanso de algumas consciências e com esta mania de tudo facilitarmos, que somos um país de brandos costumes, doce e tolerante, onde o racismo não tem expressão significativa e que somos uma sociedade multi-racial. É até costume lembrar, a propósito, a nossa fácil relação com outros povos, resultante de um colonialismo exemplar que teria favorecido tal facto. Nada de mais enganador e um mito que importa desmontar, não tanto hoje e agora para julgar o passado e avaliar a real dimensão do chamado «encontro de culturas» que o assinalaram, feito de esmagamento cultural, de humilhação, de dor e, não raro, de violência brutal, ou para lembrar uma guerra colonial que hoje muitos querem apagar da memória, mas antes para permitir ver a realidade para além das fachadas, se efectivamente sobre ela queremos agir.
O racismo existe, presente nos ditos, nas anedotas, de forma ingenuamente subtil, mas presente também nos factos: espancamentos, agressões, mutilações, mortes até. Homossexuais, militantes de esquerda e sobretudo africanos são o alvo preferencial. A lista é longa, a impunidade, total. A prová-lo está o facto de serem muitas vezes os próprios agentes da autoridade, supostos defensores da lei, a protagonizá-la.
A lei, essa, é clara: proíbe actividades de organizações fascistas, impede a formação de partidos nazis e garante a igualdade de todos, impedindo que alguém possa ser prejudicado ou privado de qualquer direito em razão da raça, da língua, do território de origem, da religião ou das convicções políticas. Obviamente não tem chegado!...
Sr. Presidente, Srs. Deputados: a televisão deu-nos não há muitas meses, através de imagens acusatórias, o impiedoso testemunho de um jovem guineense barbaramente espancado, até à cegueira por agentes da PSP em Vila Nova de Gaia. São imagens que - estou certa - não deixaram de tocar profundamente muita gente e causar a mais viva repulsa e repúdio por poderem acontecer no nosso país.
É uma situação que não pode ficar impune - e certamente muitos partilharão desta opinião-, mas esse é o anti-racismo mais fácil, aquele que, pelo carácter excepcional, pela brutalidade limite, torna os consensos mais fáceis. Importa alargá-lo a outras áreas porventura menos conscientes. O racismo enquanto exclusão dos outros é mais profundo, está interiorizado, é social, é cultural, é, como hipótese, não admitir viver numa zona habitada por indivíduos de outra raça é sentir-se inseguro por ter ciganos perto, é recusar a hipótese de ter negros na família é pensar que os imigrantes vêm roubar emprego.
Mas racismo é igualmente uma realidade vivida. É a expulsão de residências universitárias de estudantes só por serem africanos. É o espancamento de um homem por ser angolano. É a recusa em alugar quartos por se não ser branco. É a segregação em turmas diferenciadas de crianças ciganas ou africanas. É a segregação física e a marginalização de imigrantes e de minorias étnicas que os bairros de lata onde vivem não podem esconder, sem saneamento básico, sem electricidade, em habitações degradadas nas periferias mais pobres da cidade, a favorecer a «guettização», o isolamento e a marginalidade. É a exclusão dos meninos sem condição, crianças que a escola dificilmente está em condições de apoiar, condenadas ao insucesso escolar e a ficar à margem da sociedade, gerando a prazo fenómenos de exclusão porventura mais violentos. É negar o acesso aos cuidados de saúde, à informação, ao planeamento familiar, a uma população em si mesmo fragilizada e vulnerável. É obrigar homens a cumprir horários desumanos, sem quaisquer condições de segurança, com salários de miséria sem protecção, na total clandestinidade.
Isto passa-se em Portugal, no país que se reclama de uma privilegiada relação de cooperação com África.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: o combate ao racismo é de hoje e não pode ficar adiado. Exige uma estratégia para a igualdade e para a inserção social das minorias étnicas, respeitadora da sua diversidade e identidade culturais. Exige mudanças sociais, mas também de mentalidade, e uma nova atitude cultural.
É uma responsabilidade de todos: das igrejas, das associações e movimentos de solidariedade, dos sindicatos, dos partidos, de todos e de cada um de nós que aqui estamos. Mas é uma luta que não pode ser feita de abstracções nem de meras boas vontades. Obriga a uma acção determinada do poder, do Governo, uma acção coerente com os princípios de solidariedade de que se faz apanágio.
O anti-racismo não é um estado de alma. No ano que de novo se inicia com a extrema direita a persistir fazer do futebol veículo privilegiado de expansão, com pontas-de-lança cada vez mais visíveis de movimentos racistas e neo-nazis, não é compreensível que se fique de braços cruzados.
Portugal tem estado na rota da extrema direita europeia: cruzes celtas simbolizando a raça branca, emblemas da Legião e da Mocidade Portuguesa símbolos nazis e bandeiras com suásticas empunhadas por jovens invadiram o nosso espaço. Importa juntar dados e interpretá-los.
O racismo é uma doença da Humanidade. Tal como para a preservação da Natureza o princípio da prevenção conta também aqui faz sentido agir em defesa da vida e do direito à diferença. É, pois, recorrendo à sabedoria popular, que diz que mais vale prevenir que remediar, que lançamos a proposta de que um profundo debate se faça