242 I SÉRIE - NÚMERO 8
A história oferece-nos incontáveis exemplos de que não existe uma relação directa entre a prática da tortura e de crimes cruéis contra a humanidade e o nível de instrução e de desenvolvimento económico dos povos. O III Reich alemão configura um trágico exemplo de que uma nação de antiquíssima e maravilhosa cultura pôde gerar um poder que exterminou milhões de pessoas em câmaras de gás e fez da tortura um alicerce da política do Estado.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Insistindo na necessidade da aprovação da proposta que discutimos aqui, considero útil, pelas razões expostas, discordar da posição tomada pelo relator. Em primeiro lugar, afigura-se-me gratuito e extemporâneo que a preocupação justa pelo actual alastramento da tortura seja acompanhada de uma tentativa de subestimação da tortura em épocas recentes. A tortura deve ser banida, mas é perigoso calendarizá-la, desrespeitando a história. Ao longo do século XIX a tortura foi praticada sistematicamente por grandes potências que diziam combatê-la. Cabe recordar, entre outros exemplos, o que se passou nos EUA durante a fase de extermínio das comunidades ameríndias; as práticas da tortura na vastidão do Império Britânico; o empalamento em massa dos rebeldes durante a insurreição búlgara de 1868; e também a rotina dos pogroms russos em que milhares de judeus foram queimados.
Srs. Deputados, a luta contra a barbárie e contra crimes que rebaixam o homem exige a superação das paixões políticas para que os seus objectivos humanistas sejam atingidos. Por isso, discordo também que, numa época em que a tortura continua a ser praticada em mais de uma centena de países, o relator tenha de maneira forçada apontado a objectiva para regiões, situações e casos específicos. A tortura, para ser melhor combatida, não deve servir de pretexto à exteriorização da paixão política, neste caso, fora do lugar.
Srs. Deputados, se procedêssemos a uma selecção e hierarquia de exemplos de tortura, a lista seria interminável. E, sendo nós, portugueses, essa lista teria de principiar com uma referência evocativa à prática da tortura pela PIDE, cujos crimes pelo tempo afora vão permanecer na memória do nosso povo, e também às situações a que aludiu, e muito bem, e que são actuais, o Sr. Deputado Alberto Martins.
Infelizmente, o mau exemplo vem das próprias Nações Unidas responsáveis pelo Comité cujas actividades e finanças são tema deste nosso debate. Exaustivas por vezes quanto à enumeração de outros casos, as Nações Unidas, que me conste, nunca denunciaram a tortura em Timor Leste onde o corte das orelhas pela polícia é o mais suave dos suplícios infligidos aos patriotas que ali se batem pelo direito a construírem livremente o futuro da sua terra.
Sr Presidente, Srs Deputados: O Grupo Parlamentar do PCP aprovará a proposta em discussão.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado António Maria Pereira.
O Sr. António Maria Pereira (PSD): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, acabei de ouvir a intervenção do meu colega Miguel Urbano Rodrigues e gostaria de esclarecer bem o seguinte: quando eu disse que a tortura no século XX tinha dois paradigmas citei, por um lado, o que aconteceu com os fornos crematórios nos campos de concentração nazis e, por outro, o que aconteceu nos goulags e nos hospitais psiquiátricos soviéticos em que a tortura era aplicada sistematicamente e em larga escala.
É que há uma grande diferença, Sr. Deputado Miguel Urbano Rodrigues, entre a tortura, que acontece ocasionalmente em desobediência às leis do Estado - se amanhã há um preso que é torturado numa esquadra de polícia em qualquer país europeu, isso acontece em violação das leis do Estado porque a tortura está proibida - e o que acontece quando a tortura é utilizada sistematicamente porque faz parte da própria filosofia do Estado totalitário e porque os agentes desse Estado totalitário têm instruções para utilizar a tortura. E quando os dissidentes soviéticos iam para o goulag ou eram internados à força nos hospitais psiquiátricos, isto acontecia porque o Governo soviético assim o ordenava. Não há comparação possível entre uma situação e a outra!
Noto que o Sr. Deputado Miguel Urbano Rodrigues, ao citar numerosos casos de tortura, se esqueceu de contar o que, por exemplo, Soljenitsyne, nessa obra monumental que é O Arquipélago de Goulag, contou, assim abrindo os olhos da Europa para o que estava a acontecer na União Soviética. Gostaria de ouvi-lo condenar esses excessos da União Soviética e daqui lhe lanço um convite para o fazer, se for capaz.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, ao enquadrar historicamente a tortura, evidentemente que eu não quis fazer um tratado sobre a tortura, pois estaria aqui horas e horas a falar sobre isso, mas, sim, dizer o seguinte: até ao século XVIII, até ao chamado século das Luzes, a tortura era um dado cultural adquirido, tal como a escravatura. As pessoas e a cultura do tempo aceitavam isso como um fenómeno normal, como aconteceu na Antiguidade, a tal ponto que nessa época os escravos, antes de serem interrogados, se acontecia qualquer crime, eram previamente torturados porque se entendia que, se eles não confessassem ao serem logo sujeitos a tortura, iriam depor a favor do seu amo. Isto é, primeiro torturavam e depois se veria o que diriam! E isto era considerado normal! A tortura foi, assim, considerada normal durante séculos e séculos, até que se atingiu o século XVIII e apareceram os enciclopedistas, os homens das Luzes - Voltaire, Rousseau e outros - que denunciaram a tortura, que denunciaram os excessos. A partir daí, abriu-se a consciência da humanidade, houve uma revolução cultural, como disse há pouco.
E o século XIX condenou a tortura formalmente e passou a não admitir que o Estado ordenasse a tortura como uma actividade normal da sua própria acção, a tortura acontecia porque, em violação das leis, eram torturadas pessoas. Como se vê, há uma grande diferença.
Porém, quando se pensava que havia um progresso ético enorme da humanidade, que continuaria no século XX, tivemos a surpresa de verificar que o século XX foi pior que todos os outros porque houve então a tortura como engrenagem do Estado, do Estado totalitário. Em Portugal também com a PIDE. Mas os casos paradigmáticos foram aqueles que citei há pouco, que não podem ser ignorados e que o Deputado Miguel Urbano Rodrigues não pode ignorar.
Vozes do PSD: - Muito bem!
O Sr. Presidente (Correia Afonso): - Para responder, se assim o desejar, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Urbano Rodrigues.
O Sr. Miguel Urbano Rodrigues (PCP): - Sr. Presidente, penso que, em todo o debate político e quando se discutem temas como este, tem de haver um sentido de medida. Daí eu ter dito que, ao tratar-se do tema da tortura, esta fixação da objectiva em duas ou três situações era anómala.