31 DE OUTUBRO DE 1996 215
é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que, nas últimas semanas, aqui, no Plenário e na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, se discute a questão da segurança em Portugal. Mas a discussão que vai ter lugar, hoje, aqui, sobre o relatório de segurança interna, respeitante a 1995, é uma boa oportunidade para nos debruçarmos sobre uma questão que interessa, seguramente, a todos os portugueses, na base de um documento que tem atrás de si uma ponderação cuidada, por parte das várias forças e serviços de segurança, dos dados respeitantes a 1995.
Na realidade, trata-se de um conjunto de materiais e conclusões que foram sopesados em órgãos onde elas se encontram representadas (o Gabinete do Coordenador de Segurança e, como manda a lei, o Conselho Superior de Segurança Interna), onde se procedeu a um exame circunstanciado dos dados propostos.
A circunstância de este relatório dizer respeito a 1995 pode parecer uma novidade chocante, mas quem estava na Assembleia, na Legislatura passada, sabe que já se chegou a discutir em simultâneo dois ou três relatórios respeitantes a três anos, portanto, apesar de tudo, há uma tentativa de chegarmos a um timing mais conveniente na discussão desta matéria. Essa circunstância de sé tratar de um documento respeitante a 1995 permitirá talvez uma análise mais distanciada, permitirá separar os aspectos de natureza conjuntural de alguns outros de feição mais permanente na configuração da nossa criminalidade e das ameaças à nossa segurança.
Penso que estamos na hora do debate, em que se torna apropriado separar o que tem idade, o que tem peso, daquilo que é conjuntural. Aliás, reparei que, em várias intervenções dos Srs. Deputados, nesta Câmara e na imprensa, tinha havido uma justa preocupação de separar os factores que se vinham acumulando neste domínio das manifestações conjunturais, sempre possíveis e, aliás, recorrentes nesta matéria.
Gostaria de começar por recordar algumas limitações na avaliação da situação e no próprio posicionamento público em relação às instituições, porque tendo estado nesta Casa durante vários anos e tendo-me pronunciado sobre estes relatórios e estes dados várias vezes, ficaria mal com a minha consciência se não mantivesse aqui uma relação de continuidade com algumas preocupações que fui expressando e que devem continuar a ser salientadas nesta Assembleia.
A primeira é que se mantém um deficiente conhecimento da realidade criminal, da realidade da vitimação, da realidade da segurança, porque não nos equipámos ao longo de anos, ao longo de décadas, com instituições e com estruturas produtoras de estudo, de conhecimento e de investigação. Precisamos disso. Há, noutros países, institutos de altos estudos de segurança, institutos de criminologia em pleno funcionamento, linhas. de investigação permanente, mas nós ainda não estamos equipados nessa matéria, sendo essa uma deficiência que temos de suprir, para conhecer e diagnosticar melhor.
Em matéria de vitimação, fazemos alguns inquéritos de dois em dois ou de três em três anos. Esses inquéritos têm a maios importância, em todos os países do mundo, para avaliar o andamento real da criminalidade e controlar o valor das estatísticas oficiais. Nalguns outros países, como, por exemplo, em Inglaterra, são, em simultâneo, tornados públicos os elementos das ocorrências policiais e os de estatísticas de vitimação.
Porém, neste momento, não temos condição para fazer isso. Contamos ter no próximo ano um novo inquérito de vitimação que possa, como aconteceu no passado com os que foram realizados, permitir temperar o conhecimento destes fenómenos.
Por outro lado, mantém-se - e é importante dizê-lo um deficiente conhecimento das tendências pesadas da evolução da nossa criminalidade. Há um estudo, em boa hora encomendado pelo Centro de Estudos Judiciários, que nos alerta para as revoluções importantes no andamento da criminalidade em Portugal nas últimas, décadas, apontando-nos duas, que continuam a ser muito impressivas: a revolução do automóvel, ou seja, a entrada do automóvel no processo criminal e na justiça criminal, ocupando uma grande facha da «Estrada da Justiça», que ocorreu a partir dos anos 60; e, depois, a partir do princípio dos anos 80, com mais significado, a revolução da droga, visto que, sendo embora diversos os relacionamentos entre droga e crime, existe uma cerrada relação entre esse tipo de fenómenos.
Por outro lado, temos indicadores de confiança no sistema global da justiça penal, considerando as polícias e o funcionamento do sistema judicial, que nos continuam a dar dados preocupantes em relação à avaliação pública desses sistemas. O que conhecemos do funcionamento global do sistema de responsabilização em Portugal continua a ser uma fonte de reflexão, porque, como aqui disse, apenas 1/4 da criminalidade sofrida é participada e os números da participação mantêm-se baixos nos últimos inquéritos de vitimação, sobretudo, na região da Grande Lisboa e na área da Comissão Coordenadora de Lisboa e Vale do Tejo. Desse 1/4 dos crimes participados, apenas 113 é esclarecido e conduzido a tribunal. E desse 1/3, metade dos processos que entram na fase de julgamento não são concluídos por julgamento mas por outras vias, o que descaracteriza e desnatura a própria actividade judicial, que se emprega em metade do seu tempo a lidar com processos que, afinal, não terminam por julgamento.
Ora, isto aponta para factores estruturais importantes que têm a ver com taxas de impunidade elevadas quando comparados os números e as probabilidades. Temos taxas de impunidade muito elevadas - e isso é estudado noutros países -, porque também não temos, entre nós, na disciplina económica do crime, esses estudos desenvolvidos. Basta pensarmos nas dezenas de milhar de situações de contumácia, que se acumularam ao longo de meia dúzia de anos e que começaram a prescrever em cadeia, para percebermos que há muitas dezenas de milhar de concidadãos nossos que fugiram, com êxito, aos processos criminais em que deviam responder e foram premiados pela prescrição. Quem contacta com o Diário da República sabe que isto acontece, porque há suplementos inteiros a declarar as contumácias e as prescrições das contumácias declaradas.
Ao longo de anos e décadas acumularam-se factores de incivilidade na sociedade portuguesa, que não foram respondidos adequadamente, e verificamos uma deficiência importante no funcionamento de sistemas a montante da própria idade da imputabilidade criminal. Esses sistemas são importantes na compreensão da dinâmica do crime e levam-nos a perceber que, por exemplo, estudos feitos mostrem que, em quatro anos, o número de pessoas que foi condenado pela segunda vez em processo-crime aumentou em número superior a 80%, o que é um indício de que um conjunto de carreiras criminais, ao longo. dos anos, se foram estabilizando e apareceram, como saída, como