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26 DE ABRIL DE 1999 2781

consciência ultrajada numa tutela; a informação expressa num diktat; as colónias incendiadas numa guerra; as relações exteriores balizadas num cerco; o cidadão atolado num pântano».
E acrescentei: «É profilático lembrar. Lembrar que vivemos com um esbirro em cada esquina; um ouvido em cada telefone; um pé de cabra policial em cada porta; uma espreitadela pidesca em cada carta; um expurgo em cada intimidade; um cassetete em cada grito; um mandato de captura em cada capricho; uma ordem de morrer em cada jovem; uma injustiça em cada salário; uma violação em cada consciência.
Era este o Portugal feudalizado, belicista, neurótico e solitário de antes do 25 de Abril».

Aplausos do PS.

É de facto importante a memória do mal, a servir de negativo à memória do bem. Até porque - às vezes esquecemo-nos disso - os cidadãos que hoje têm 40 anos, ou seja, mais de metade da população portuguesa, e cerca de três quartos dos seus eleitores, começaram a raciocinar politicamente já depois do 25 de Abril. Para eles, a liberdade já começou transformada em hábito, sem grande margem a poder converter-se num verdadeiro sentimento.
Já se disse o mesmo de outro modo: «Já não estamos privados da liberdade, mas do pensamento da liberdade».
Por vezes, resisto mal à impressão de que, os que não têm acesso à memória dos tempos da ignomínia, da opressão, da indignidade e do medo, têm tendência para pensar que a nossa indignação contra «esse outrora agora», é sintoma de mentalidade doentia. Como sempre viveram em liberdade, propenderão a pensar que, se não foi sempre assim, sempre assim há-de ser. A verdade, porém, é que os novos arranjos do poder provisorizam vitórias que julgávamos definitivas. Daí, repito, a importância da memória do mal.
Até porque, ao contrário dos velhos resistentes da liberdade, aqueles contra quem resistiram não ensarilharam as armas do seu poder despótico nem encolheram as garras do seu ódio. É vê-los em operações de branqueamento de imagem, inequívocas e frequentes demais para não serem suspeitas.

Vozes do PS: - É verdade!

O Orador: - Salazar volta a assumir, nos recordatórios de alguns, o estatuto de homem enviado por Deus para salvar a Pátria das garras do mal. Não faltam sequer os sempre disponíveis inocentes úteis. E como sabem que não é fácil combater a partir de fora os regimes democráticos, cuidam de miná-los por dentro.
Ainda que com reserva mental, entram no jogo democrático. E sabendo que não podem com êxito explorar-lhe os defeitos - que não tem -, exacerbam-lhes as virtudes, até convertê-las no seu próprio oposto.
A virtude privilegiada para essa operação de autodestruição por dentro é a liberdade. Sabendo que, mal doseada, pode converter-se em desordem, lutam por aquilo que odeiam, instrumentalizando os excessos de liberdade e tentando transformá-los em passaporte para a anarquia. Atingida esta, passarão - é a lição da história - a exigir já não liberdade mas opressão e ordem.
Demais sabem eles o que com facilidade esquecemos: que a partir do momento em que a ordem valer mais na bolsa da psicologia colectiva do que a liberdade, os mesmos que se bateram por esta passarão a exigir aquela.
A esperança desses é que a liberdade venha a morrer às suas próprias mãos, que a liberdade sem controle mate a liberdade. Será por acaso que o neonazismo renascido volta a empunhar as armas do desemprego, da violência, da insegurança e da desordem que franquearam o acesso ao poder de um pintor medíocre de bigodinho irritante?
Em intervenção que aqui fez o saudoso Salgado Zenha, a propósito do 25 de Abril, deixou-nos este recado: «o contrário da tirania não é a anarquia, mas a liberdade».

Vozes do PS: - Muito bem!

O Orador: - Mas será que deliro receando que a liberdade e a democracia conquistadas a partir de 25 de Abril possam de novo estar em risco?
Não me digam, por favor, que deliro por ser óbvio que não é configurável um risco iminente. Não é disso que se trata. Do que se trata é de tendências, não tanto nacionais mas universais, cujo terminal previsível pode comportar esse risco.
É que a democracia vem de um mundo e de um tempo que não existem mais. Está aí, impante, o mundo só das velhas utopias, das instituições que o iluminismo nos legou, ameaça não deixar pedra sobre pedra. A luz agora é outra. Contraditoriamente, por um lado, globaliza, por outro, feudaliza. Globaliza territórios, mercados, moedas, informações, culturas, identidades. Mas converte satélites, cadeias de televisão, empresas transnacionais e máfias em novos pólos de poder feudalizado. Numa bandeja de livre iniciativa e feroz competição, redistribui o poder entre os profetas da informação, os donos do dinheiro e os senhores do crime organizado, os novos senhores feudais.
À centralização do poder, que esteve na origem dos estados-nação que o século XVIII nos legou, segue-se agora a sua pulverização. Novos poderes difusos dividem entre si, a benefício de inventário, a herança do Estado clássico que, incapaz de reagir, recua. Tudo se passa como se. um big-bang político pusesse a flutuar nos espaços das velhas soberanias pedaços da originária/w/e - y/os. O próprio cidadão, depois de durante séculos ter sido tutelado e sujeito, aspira agora a ser autárquico, e progressivamente o é.
Como foi isto possível? Foi-o porque a universalização da informação criou condições propícias ao triunfo de novos liberalismos. O liberalismo político, que exaltou o cidadão em detrimento da autoridade do Estado, e o liberalismo económico, que exaltou a competição em detrimento dos mais fracos. Resultado: uma sociedade civil que aspira à retoma das prerrogativas políticas que no passado delegou e uma organização económica - melhor diria, uma desorganização! -, que progressivamente se emancipa da tutela do Estado, concentra a riqueza nas mãos de cada vez menos e distribui a pobreza entre hordas de cada vez mais.
Neste novo contexto, a riqueza não apenas se concentra em novos pomos de poder político como se imaterializa, se oculta, e se joga à velocidade da luz no casino universal das