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2782 I SÉRIE - NÚMERO 77

bolsas, aí onde foge a pagar impostos e escapa à incomodidade da distinção entre a de origem limpa e a de origem suja. É nesta e outras lavanderias da «roupa» estampada nos bancos centrais que o crime organizado a si próprio se lava, após o que acede ao poder económico legítimo, e à sua extensão política, em pé de igualdade com qualquer outro.
Enquanto isto, os arranjos institucionais herdados ganham ferrugem e ganham bolor. Entre eles, os que mais se identificam com os valores e as práticas da democracia e da liberdade de não competir ou de não esmagar o próximo, tanto faz.
Pergunta elementar: foi este o mundo em função do qual o 25 de Abril escolheu os seus valores e programou os seus sonhos? As convicções e os ideais dos que o fizeram continuam eficazes contra os seus novos inimigos ou precisamos já de um outro 25 de Abril por dentro de cada um de nós, para que possamos vencer as novas batalhas do futuro?
O que faz mais sentido? Recordar o passado de Abril ou reflectir sobre o seu futuro?
Abril foi o fim do mal e a aurora do bem, 25 anos depois, o balanço é não só positivo mas exaltante. Somos hoje um País livre e democrático, que não apenas cresce mas em bom ritmo se desenvolve. País europeu entre parceiros europeus, prestigiado, com assento na torre de comando da nave europeia comum em direcção ao futuro. Somos, além disso, um moderno Estado de direito, com o que de garantístico esse conceito encerra.
Mas, em tempo de balanço, cumpre reconhecer que em alguns aspectos falta cumprir Abril, enquanto que noutros se impõe actualizar Abril.
Falta cumprir Abril com a libertação do povo de Timor, povo heróico, povo mártir, a nós ligado por laços de história, afecto e cidadania. Já desponta a alvorada da sua libertação por sobre os cadáveres de renovadas chacinas. O medo começa a transferir-se para o coração do algoz, mas ainda é cedo para cantar vitória. Não poderemos, no entanto, permitir-nos descanso enquanto, em plenitude, não raiar em Timor o sol da liberdade.

Aplausos gerais.

Falta cumprir Abril com a paz em Angola. A guerra civil que vitima o seu povo tem culpados certos, longínquos e próximos. Ainda assim, o povo português reflecte as ansiedades do povo angolano como se fossem suas.
Falta cumprir Abril com o triunfo definitivo dos direitos humanos, onde quer que novas limpezas étnicas, novos racismos, novas xenofobias e novas injustiças ou também novas violências desnecessárias, os ponham em causa ou apenas em risco. Onde quer que isso ocorra, diz-nos directamente respeito, a nós e a todos os povos, a nós e a todos os homens. Essa universalização de princípios e sentimentos é decerto o lado positivo de um fenómeno que justifica receios:
o fenómeno da globalização.
Falta ainda cumprir Abril, para além do muito que já foi cumprido, no grau de acesso a muitos dos direitos fundamentais que a nossa Constituição consagra. Onde ela diz - e muitas vezes diz - «todos têm direito a...», a realidade corrige por defeito esse universo. Se são cada vez mais os que dispõem de condições de exercício dos correspondentes direitos e se, em matéria de direitos fundamentais, o desenvolvimento é tarefa por definição inacabada, a muitos títulos estamos longe de poder descansar.
O meio século em que vivemos privados dos mais elementares direitos deixou marcas de difícil apagamento. E se os níveis de desenvolvimento se medem em termos comparativos, ocorre que os países desse nosso salutar campeonato continuam, eles também, a desenvolver-se, pelo que temos de vencer o nosso atraso e de compensar o seu avanço.
E como actualizaremos Abril? Preservando e actualizando os seus ideais, valores e propósitos, num contexto não apenas diferente mas em grande medida outro. Neutralizando o abissal desfasamento entre a realidade de hoje e a ordem política, económica e social de ontem. As regras do exercício do poder têm de mudar. O próprio poder é hoje substancialmente outro.
Sempre a essência do poder mudou com o alargamento do espaço das unidades políticas. É a conhecida inter-relação entre o tamanho e a natureza das coisas. Pois bem, as clássicas unidades territoriais fundem-se; as fronteiras que as balizavam derrubam-se; os sentimentos que as animavam apagam-se; a velha polis, raiz semântica da palavra política, tende agora a assumir a dimensão do próprio orbe. Enquanto isso, a própria acção política tradicional perde preeminência. Já os ensaístas se atrevem a configurar cenários de cena política deserta.
É esta tendencial transmutação dos corpos políticos tradicionais num só, qualitativamente ainda mal definido, que nos não deixa ver claro na bola de cristal do futuro.
Já se vislumbram alterações qualitativas de enorme complexidade e significado. O novo corpo político será mais relacional do que o institucional. Não sendo ainda fácil configurá-lo, é desde já possível concebê-lo como um complexo de redes informacionais entrelaçadas, por onde o novo poder circula, relacionado com jogos de interesses e já não, ou não tanto, com princípios e valores.
Os circuitos institucionais clássicos - os parlamentos, os governos, os tribunais, os partidos, os sindicatos e as igrejas -, se não os próprios conceitos de soberania e representação, verão acentuado o seu declínio. Irá ficando cada vez mais óbvia a sua impotência para darem respostas eficazes, em termos institucionais clássicos, às novas questões do nosso tempo.
Problemas universais, sejam eles o consumo de drogas, a explosão demográfica, a implosão ecológica, o crime organizado, a insegurança, o desemprego, só podem ter soluções universais, ou não as ter. Quanto mais dilatada é a sua dimensão, mais absurdo é tentar solução para eles em sistema de recinto fechado.
E a crise universal dos valores só pode encontrar tempero em normas jurídicas e princípios éticos imbuídos, eles também, do requisito da universalidade.
Parto de uma convicção: uma bolsa universal de informações e valores não chega para preencher o vazio deixado, ou a deixar, pelo complexo institucional herdado.
Neste panorama é ainda válido o espírito de Abril? Eu diria que o é mais do que nunca. Ele apeou definitivamente o conservadorismo e entronizou o espírito de mudança num mundo que vertiginosamente mudava e muda. Voltar a ser conservador, hoje, seria não apenas absurdo mas suicidário.