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0147 | I Série - Número 05 | 27 de Setembro de 2001

 

originada pelo mercado livre e, por outro, orientar esses rendimentos de acordo com a visão que tem do interesse geral e não de acordo com o critério do lucro privado que orienta o investimento particular?
Nesta perspectiva, a poupança privada entregue a si própria não é nem patriótica, nem socialmente generosa. Ou foge do investimento arriscado, nas conjunturas de crise, como agora, em que a economia, pelo contrário, exigiria o reforço do investimento, ou investe de acordo com critérios de acumulação que, frequentemente, não coincidem com o interesse colectivo. E assim surgem duas visões acerca da política fiscal: para uns, onde nós estamos, a política fiscal tornou-se um instrumento central de justiça social e de fomento do desenvolvimento económico; para outros, tornou-se uma maldição a evitar. Os partidários do Estado mínimo legitimam a fuga ao fisco, a defesa da tributação indirecta, sobretudo, a oposição à progressividade do imposto sobre o rendimento ou, simplesmente, a oposição à tributação directa do rendimento.
Criaram-se, portanto, historicamente, duas culturas de fiscalidade com pressupostos distintos, nesta base.
É certo que, desde os finais do século XIX, com a industrialização, a proletarização, a urbanização, a complexificação social e, sobretudo, com a ameaça da revolução social, o espectro da revolução russa e a necessidade de o Estado intervir na Grande Guerra, se inicia um longo ciclo de legitimação da intervenção económica do Estado na economia, a tendência para a intervenção correctora a nível dos rendimentos, das políticas assistenciais e até do fomento económico directo ou indirecto. Esse ciclo acentuou-se drasticamente na grande depressão de 1929 e, novamente, no segundo pós-guerra, agora em face das ameaças da «guerra fria», com o arranque e o avanço de grande base de intervenção do Estado, das políticas do Estado providência no Ocidente.
Também toda a gente sabe que este longo ciclo de legitimação teórica e prática do intervencionismo estatal na economia, e da sua consequente política de tributação, viria a ser contestado, viria a ser reduzido por aquilo a que se pode chamar a ofensiva neo-liberal dos anos 80, que teve as suas expressões político-governamentais emblemáticas na política «Thatcheriana» e, nos Estados Unidos, na política «Reaganiana», que, em grande parte, foram coincidentes com os fenómenos de globalização capitalista da economia. Também é sabido que as agudas contradições geradas por esse tipo de globalização, segundo modelos neo-liberais que desarmaram económica e socialmente o Estado, originaram problemas sociais muito graves e, no quadro do recente contraciclo da economia, estão hoje a fazer renascer a consciência da necessidade política, económica e financeira do regresso a políticas de intervenção e correctoras não só ao nível da política fiscal e dos rendimentos mas também ao nível da regulação dos sectores estratégicos da economia e, seguramente, dos fluxos de capital.
Como tal, o debate acerca da tributação tem toda a actualidade e está novamente no centro da questão, já que acabou um ciclo e estamos em pleno debate doutrinário e político acerca do neo-intervencionismo do Estado na economia e do seu principal argumento, que são as políticas fiscais. É muito natural, portanto, que esta questão se revista de uma grande actualidade doutrinária, política e económica.
Estas linhas gerais que procurei apresentar aqui muito grosseiramente não são, no entanto, aplicáveis a Portugal. Portugal foi, ao longo deste período, uma excepção, o que nos ajuda a perceber algumas das reacções à política fiscal com que deparamos. É certo, Srs. Deputados, que no meu entender a reforma fiscal é uma desagradável surpresa histórica para os ricos e para os poderosos deste país, que, ao longo do século XX, sempre se tinham oposto com êxito a qualquer simulacro de tributação séria dos seus rendimentos.
Quem conhece a História sabe que são questões fiscais que estão na origem do derrube daqueles governos que marcam o biénio radical republicano. O governo do Álvaro de Castro e o governo do José Domingos dos Santos caiem por questões fiscais, ou seja, caiem porque tentam impor fiscalidade elementar sobre os rendimentos e tentam designar - imagine-se! - delegados da Administração nos conselhos de administração da banca privada! Ora, no quadro dessa reacção contra a política fiscal dos governos radicais republicanos surge a União dos Interesses Económicos e surge uma das mais poderosas associações patronais, conjugando-se na conspiração que vai dar lugar ao 28 de Maio de 1926.
É um facto que, desde a viragem proteccionista do início do século, com as leis de protecção cerealífera, de 1889, com a pauta do Oliveira Martins, de 1891 - e está ali o Sr. Deputado David Justino que sabe mais disto do que eu -, ou com a legislação cerealífera posterior, aquilo a que podemos chamar modelo de livre câmbio, do século XIX, tinha acabado e entrou-se, em Portugal, num ciclo de proteccionismo que vai seguramente até à entrada de Portugal no mercado comum, já nos 80 deste século. Ora, este ciclo de proteccionismo escorou a riqueza, em Portugal, em três grandes colunas que são abaladas por uma política fiscal moderna. A primeira, aquilo a que o Engenheiro Ferreira Dias chamava a «sombra ombrosa da pauta aduaneira» - a pauta de Oliveira Martins, de 1891, a pauta do António Maria da Silva, de 1923 e a pauta do Salazar de 1929. A pauta aduaneira, a grande «sombra ombrosa» que protegia a nossa economia! A segunda coluna foi o regime corporativo na sua dupla manifestação, a cartelização corporativa e o célebre condicionamento industrial, à sombra dos quais se protegiam sobretudo os interesses estabelecidos, e a terceira coluna essencial, obviamente, tem de ser a polícia e a legislação sindical corporativa, que proibia o direito à greve e a liberdade de associação e que, portanto, criava um elemento de grande comodidade para a exploração das empresas da época.
Tudo isto, Srs. Deputados, criou um tipo especial de elite económica em Portugal, uma elite de «chapéu na mão» face ao Estado, habituada ao lucro fácil, à desnecessidade de inovação tecnológica, à sobrexploração do trabalho, à ausência da aposta na formação profissional e dependente em tudo do Estado. Dependente do Estado para se defender da concorrência externa e interna, dependente do Estado para regular administrativamente a oferta, dependente do Estado para a financiar e dependente do Estado para manter a ordem social. Uma elite económica cuja tributação, durante dezenas e dezenas de anos, se baseava numa vaga e assumidamente subestimada presunção dos rendimentos, o que criou uma cultura sólida de privilégio fiscal que assentava, na sua essência, no direito a ter uma baixa tributação sobretudo nos altos rendimentos, ao abrigo da teoria de que os altos rendimentos deviam ter uma dispensa fiscal para poderem ser livremente investidos na economia.