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I SÉRIE — NÚMERO 78

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liberdade surgiu nas suas infinitas consequências: a descolonização; a Constituição com o discurso dos

direitos; a passagem do poder militar ao poder civil; as transições democráticas que noutras partes do mundo

se seguiram; a Europa e a aventura moderna e cosmopolita; e, agora, a democracia que se organiza para os

dias difíceis da globalização, os dias da transformação do ambiente social e dos paradigmas políticos.

Abril transporta no poder da escolha o mandado de uma justiça emancipadora, a empreender por todos,

em todos os lugares e todos os dias. Para isso deu-nos o estatuto maior de cidadãos, de autores do mundo e

exige-nos, agora, a continuação coletiva das suas causas.

Se há uma ideia síntese para o programa eterno de Abril é que ele afirma o discurso público e o princípio

da humanidade dos direitos: é o programa do contrato social legitimador por que todas as políticas são

medidas; é a concretização do ideal iluminista de autonomia ou autogoverno que nos reconhece, a todos, a

qualidade de sujeitos e pela representação nos faz legisladores da própria lei; é a autonomia que dá o

mandato sagrado desta Sala.

Por isso, o ato de existência do Parlamento, no seu dia-a-dia de debate e deliberação, é, ele mesmo, uma

quotidiana e continuada homenagem ao 25 de Abril de 1974. É no Parlamento que a justiça se garante e a

mudança acontece.

Abril celebra o valor do consentimento como condição para as sociedades democráticas. O consentimento

do povo, condição para o governo legítimo dos homens. No relato de um Capitão de Abril, na abertura da

exposição «O nascimento de uma democracia», foi o povo decisivo quando, todo inteiro na rua, se juntou aos

militares e com eles fez a revolução vencer.

É sempre o consentimento do povo que nos dá a razão e a existência, que nos diz o que está certo, que

nos dá o sinal da justiça pelos caminhos da sua intuição mais profunda.

Abril celebra o exercício da política, dentro e fora das instituições, os que se lançam na crueza da luz

pública para responder às exigências da democracia; celebra os que se integram na cidade para que, afinal,

todos sejamos integrados; celebra os fazedores da história, os poderes legítimos, os cidadãos ativos,

anónimos e não anónimos; e celebra os grupos de cidadãos que se erguem contra a apatia e a desistência,

contra a descrença e a desconfiança e, com as suas causas, batem à porta das instituições e são o desafio

delas. O Parlamento recebe-os todos os dias. Pressente-se o seu papel estratégico na comunicação política

do futuro. Eles contagiam e mobilizam para a participação e trazem à democracia uma nova vertente

necessária, por assim dizer, deliberativa e informal e também afetiva.

Neste «teatro do mundo espontâneo», esses grupos articulam impulsos que servirão um dia os programas

dos Parlamentos, dos Governos e dos partidos.

Dizia bem Tocqueville que é nessas comunidades de solidariedade, nessas redes de ação política no

interior da comunidade maior, que é o Estado, que os cidadãos assumem a sua capacidade de escrutínio das

políticas públicas, num debate em que as opiniões particulares se transformam em posições refletidas.

Este ativismo cívico que interage com as instituições é hoje essencial ao exercício da política.

Estamos longe do velho modelo de escrutínio simplesmente centrado em eleições periódicas. A

representação não pode mais prescindir desses impulsos para que a democracia se cumpra. É a resposta

necessária da democracia ao novo espaço público.

É, afinal, o espaço público da pós-modernidade, com o seu labirinto de interações, da integração dos

Estados, da era digital, dos movimentos demográficos, dos mercados, do mundo sem centro e sem fronteiras.

É o novo espaço público que, todo inteiro, nos comete a tarefa primeira de nele acomodar a substância moral

do Direito, é o espaço público, hoje também como espaço de ressonância de um sentimento, que se acentuou

nas últimas décadas, de esvaziamento de valores e perda de sentido.

Uma espécie de niilismo, de indiferença ou desistência desafia a ação política para a gigantesca tarefa de

dar também, ela mesma, resposta a esta impressão de perda, como se lhe coubesse ainda a remoção do

desencanto moderno para que Weber nos alertava, como se lhe coubesse ainda a busca de uma felicidade

que não é apenas pública.

É, por isso, necessário recriar a crença nas possibilidades da liberdade política, que é, afinal, também a

crença de cada um nas possibilidades de si mesmo, de se construir e transcender, porque a ação política é

sempre «a renovação da condição humana, um segundo nascimento», para lembrar Hannah Arendt. Nela,

cada um de nós ganha sentido. Impossível a dignidade individual que abstrai do outro.