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I SÉRIE — NÚMERO 119

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Se nada voltou a ser o mesmo — e ainda bem — nestes quase 50 anos de caminho, só a desonestidade pode negar o que ficou por fazer, o que foi abandonado, os recuos a que também assistimos: os salários que não chegam para viver e as casas com preços que os salários não conseguem pagar; o transporte que não vem e a justiça que não anda; os atropelos que tiram acesso à saúde e aos cuidados aos mais velhos ou a falta de professores que nega o ensino aos mais novos; as novas formas de precariedade, de exclusão e até de trabalho forçado.

À recusa do tanto que ficou por fazer juntam-se recuos democráticos que não devemos ignorar. Não vale dizer que os indicadores de hoje são incomparáveis com os de há 50 anos — que mundo tão triste, o de viver do passado. A democracia constrói-se na resolução dos problemas do presente e o seu oxigénio é o horizonte de uma vida melhor. Sem esperança, definha.

«Já murcharam tua festa», lamentava Chico Buarque em 1978. «Já murcharam tua festa, pá / Mas certamente / Esqueceram uma semente / Em algum canto de jardim.» É dessa semente que cuidamos, até porque, se é certo que se sente o cheiro do bafio em tantos cantos do mundo, que se propagam os fungos do ódio nas caves escuras das redes sociais, que até pode haver manchas de bolor num Parlamento democrático, e se é certo que a desesperança contamina e adoece a democracia, não é menos certo que estes fungos podem ser derrotados e que o bafio desaparece sob o mesmo sol que germina a semente.

Não tem de ser futuro o que é feito do pior passado. Saibamos nós cuidar a semente de Abril. Aplausos do BE. O maior perigo das celebrações de Abril é que se transformem em cerimónias fúnebres: palavras repetidas,

cravos esquecidos no peito, frases feitas, declarações antifascistas em tom inflamado e sem nenhuma tradução concreta, evocações vazias das lutas passadas que se negam no presente.

Nada pior do que o povo feito alfinete de lapela e a Revolução bem fechada nas páginas da enciclopédia, como que a deixar claro que os tempos de o povo agarrar o seu destino para construir uma vida de que se possa orgulhar já lá vão.

Nada pior do que esta resignação a um país em que a história é postal para turista, em que não pode se aspirar a mais do que a gorjeta ou então a emigrar, para talvez um dia, como no poema da Capicua, poder pagar as mordomias do «Hostel da Mariquinhas».

Nada pior do que esse «ramerrame» insidioso do «habituem-se», que os netos não terão acesso aos direitos que os avós construíram ou que as crises podem justificar todas as misérias governativas, como se o Governo em democracia não fosse precisamente para resolver as crises em nome do povo.

Nada pior do que essa lama que contamina todo o debate, que faz do medo o argumento para todas as coisas — se não for assim, pode ser pior, se não formos nós, podem ser uns piores.

O bafio antidemocrático, o pulsar do ódio e do salve-se quem puder que se vai fazendo sentir pelo mundo são invariavelmente alimentados por esta lama de desesperança e de medo, que transforma a política num debate vazio e nega a resposta ao concreto das vidas.

A política é uma escolha e só é uma escolha democrática quando é fonte de esperança, quando alimenta a construção coletiva de um presente digno e de um futuro por que ansiar.

Cuidar da semente de Abril é ter o desassombro da esperança e a coragem do confronto com os poderes que crescem na sombra para diminuir a soberania popular. Cuidar da semente de Abril é fazer essa escolha: o salário em vez do abuso, a casa em vez da especulação, o médico em vez do negócio da doença, um planeta para viver em vez do poder extrativista.

Um Governo que se esconde na vitimização com a pandemia ou com a guerra, que se transforma numa agência de publicidade e PowerPoints em que já ninguém acredita, por muitos cravos que espete ao peito, não cuida da semente de Abril.

Sempre que o bafio fascista se fizer sentir, no Parlamento como na vida, estaremos juntos sem hesitação para o combater. Recusamos determinadamente a subalternização de todos os debates substanciais da política às arruaças da extrema-direita.

Aplausos do BE, do L e de Deputados do PS.