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24 DE FEVEREIRO DE 1984

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O Decreto-Lei n.° 356/79, de 31 de Agosto, à revelia da Constituição e com a eficácia retroactiva por se apresentar como diploma interpretativo, derrogou na prática, o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 256-A/77 e estabeleceu como fundamento bastante dos actos discricionários de transferencia ou exoneração de funcionários da Administração Pública, de institutos públicos ou de empresas públicas nomeados discricio-nariamente a mera alegação de «conveniência de serviço».

Revogado, entretanto, pelo Decreto-Lei n.° 502-E/ 79, de 22 de Dezembro, o Decreto-Lei n.° 356/79 reentrou na ordem jurídica, por força do Decreto-Lei n.° 10-A/80, de 18 de Fevereiro. Sujeito a fiscalização na Assembleia da República, este último diploma viria a obter ratificação, apesar de se encontrar patentemente inquinado de inconstitucionalidades.

A aplicação da aberração legal tem sido contrariada pelos tribunais. Embora tenha adoptado o entendimento de que antes da revisão constitucional o dever de fundamentação de actos administrativos não se baseava na Constituição, mas meramente em disposições da lei ordinária, o Supremo Tribunal Administrativo não só se pronunciou reiteradamente contra a aplicação retroactiva da legislação de 1979, como a considerou organicamente inconstitucional, mandando anular, por falta de fundamentação, vários despachos oportunamente impugnados.

Não surpreende que assim venha acontecendo. Sobre a questão da necessidade de fundamentação do acto administrativo gerou-se na jurisprudência como na doutrina do direito administrativo um larguíssimo consenso. A fundamentação surge, na lição corrente dos administrativistas das mais diversas correntes, como um importante instrumento de defesa da legalidade administrativa.

«A fundamentação dos actos administrativos», lembrava há poucos anos o actual ministro da Justiça, «visa vários objectivos, aliás, interligados. Em primeiro lugar, destina-se a permitir aos administrados, partes no processo, e a quem o acto deve ser comunicado, o conhecimento das razões do direito e de facto que justificam a decisão tomada. Ciente desses motivos, o administrado pode querer convencer-se da sua justeza e aceitar o acto (função de pacificação), quer entender que ele é inoportuno ou ilegal e desencadear os recursos hierárquico ou contencioso que couberem (função de defesa do administrado); sem a obrigatoriedade de dar a conhecer a motivação do. acto, a defesa do administrado ficaria intoleravelmente diminuída. O exercício de poderes discricionários sem o dever de fundamentar é, com razão, apontado como um instrumento da antiga Administração do Estado absoluto que resistiu às exigências da nova ordem administrativa instaurada pelo Estado de direito. Mas, o dever de fundamentar a decisão com que, em princípio, termina o processo tem efeitos 'retroactivos' sobre o próprio processo. Os órgãos administrativos, sabendo de antemão que têm de dar a conhecer as razões que ditam a sua resolução, terão o cuidado de proceder a uma averiguação exigente da verdade material, a uma ponderação séria das provas e das razões jurídicas pró e contra, de modo a não temerem o exame do seu procedimento pelos interessados, pelos superiores hierárquicos ou pelo tribunal. A fundamentação facilita deste modo a autofisca\ização da administração pelos

próprios órgãos intervenientes no processo ou pelos seus superiores hierárquicos (função de autocontrole), e fixa, em termos claros, qual o significado que os órgãos administrativos atribuíram às provas e argumentação jurídica desenvolvidas, qual a marcha do raciocínio e opções que se precipitaram, finalmente, no acto (funções de clarificação e de prova).

O artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 256-A/77, de 17 de Junho, representa um progresso verdadeiramente decisivo na luta pela realização do Estado de direito em Portugal. Foi, todavia, redigido com a preocupação dominante de garantir a defesa, sobretudo contenciosa, dos direitos e interesses de que sejam titulares os administrados».

(...) «O Decreto-Lei n.° 356/79, de 31 de Agosto, considera no seu artigo 1.° que, nos casos de transferência ou exoneração de funcionários da Administração Pública, de institutos autónomos ou de empresas públicas, quando praticados legalmente no uso de poderes discricionários, é suficiente como fundamentação invocar-se a conveniência de serviço. Trata-se de um grave retrocesso, apresentado ainda por cima com carácter interpretativo (artigo 2.°). Representa, a nosso ver, uma violação do princípio constitucional da legalidade administrativa».

A questão foi debatida no quadro da revisão constitucional, introduzindo-se no articulado da lei fundamental normas tendentes à clarificação da obrigatoriedade de fundamentação.

Face ao que hoje dispõe o artigo 268.°, n.° 2, da Constituição, não podem subsistir dúvidas sobre a inconstitucionalidade material de um diploma que afasta a obrigatoriedade de fundamentação de um tipo de actos administrativos em relação ao qual o conhecimento das razões específicas e concretas do procedimento da Administração é particularmente importante para o eficaz exercício do direito de recurso contencioso.

2 — O recente debate dos projectos de lei n.° 90/111 e 98/1II confirmou a absoluta carência de argumentos dos que pretendem dar cobertura à aberração jurídica instituída em 1979.

O PSD chegou ao ponto de alegar que, havendo recurso contencioso dos actos discricionários de transferência ou exoneração de funcionários por mera «conveniência de serviço», ao cidadão visado restaria sempre a possibilidade de impugnar o acto por desvio de poder. Estando tal possibilidade assegurada, a Administração ficaria dispensada de dar cumprimento à obrigatoriedade constitucional de fundamentação dos actos administrativos. Tosca argumentação, que estabelece excepções ao dever de fundamentação aí onde a Constituição não as prevê e onde a realidade revela uma necessidade de fundamentação particularmente aguda, dadas as dificuldades de prova do desvio de poder (bem sublinhadas, a este propósito, pelo deputado José Luís Nunes, do PS, na reunião plenária em que os projectos de lei foram debatidos))

Não colhe, por outro lado, o argumento segundo o qual a revogação do Decreto-Lei n.° 356/79 seria «inútil» em virtude de o princípio de mera «conveniência de serviço» ter entretanto alastrado na ordem jurídica, constando hoje de outros diplomas.

Esta lógica do «tudo ou nada» surgiu, porém, de uma bancada, a bancada do CDS, que encobriu mal