27 DE ABRIL DE 1987
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fundo, temos uma magistratura dc pessoas, mas sem organização. Isto é, os dois corregedores, constituindo a dupla corregedoria, são, quer queiramos quer não, juízes sem lugar, sem organização c sem um ponto estrutural dc apoio.
Sinto-me perfeitamente à vontade, porque, pessoalmente, sou contra o sistema dc ir ao estrangeiro para copiar c aplicar cá. Entendo que não devemos estar fechados às experiências exteriores, mas devemos caldeá-las com uma passagem profunda por aquilo que 6 a silhueta cultural da realidade portuguesa. No entanto, 6 preciso saber por que motivo é que, ao longo dc todos estes anos, mantemos um sistema que sc afastou muito dc outros, como, por exemplo, o francês, cm que sc caminhou muito para este tipo de tribunais.
Todos sabem melhor do que cu que, felizmente, a justiça portuguesa tem uma imagem que lhe vem da capacidade objectiva c dc independência dc estar no Mundo c na vida, mas muito estribada numa objectividade c independência que tem como suporte essencial a lei. Quer dizer, numa concepção positivista, legalista, formalista, normaiivisia, que, no fundo, aponta para um valor importante, que 6 o da segurança jurídica, mas que, dc alguma forma, tem sido exercida com algum padecimento ou entorse relativamente a uma justiça concreta. Essa justiça concreta ou 6 defendida, como o foi tradicionalmente, por todas aquelas escolas que conhecemos c que, com maior ou menor duraçüo, fizeram o seu tempo, mas que caíram cm desuso por incapacidade dc resposta, ou d defendida através dos novos modelos de administração dc justiça concreta, que passam por uma perspectiva interdisciplinar. Ora, a interdisciplinaridade supõe a interinstitucionalidade, o sistema c a organização.
A grande questão que, neste momento, sc coloca, sendo teórica, não deixa dc ser importante. Isto é, ou queremos, dc facto, passar para uma administração dc justiça que sc suporia cm traves mcsiras dc sistema c dc sistema organicamente estruturado ou vamos continuar a lazer apelo a valores que são incontestavelmente muito importantes na vida comunitária, social c individual, mas que muitas vezes não passam das intenções. Ou seja, vamos continuar a ter uma máquina judiciária que leva junto das populações, porventura com mais facilidade, um produto que, lodavia, está longe do produto optimizado, como hoje podia ser.
Evidentemente que os dois corregedores ambulatórios não são mais pessoas que tenham uma estrutura dc apoio que lhes permita cm cada momento ter o próprio trabalho do processo. Mais que isso, vamos ter a situação dc que cada vez mais há o juiz que não conhece o processo, que não o prepara nem acompanha c que surge apenas para o julgar a final. Trata-se hoje dc uma situação que, cm termos internacionais c também, creio, cm termos nacionais, sc deve superar. Compreendo que as críticas que colocaram, c que não deixam dc constituir para nós um motivo dc reflexão muito importante, lenham a ver essencialmente com a distância da justiça relativamente às populações. Aliás, a intervenção do Sr. Presidente vem na linha do que tinha dito inicialmente quando analisei os inconvenientes da dupla corregedoria. É que, quando sc defende a dupla corregedoria a favor das populações, pode dizer-sc que hoje o tribunal dc círculo também sc pode deslocar. Aliás, o artigo 85.8 preve-o expressamente c não argumenta com as despesas dc deslocação do tribunal, que podem ser superiores à despesa com a deslocação das partes. No cnianto, a lei diz expressamente que cia lerá lugar quando «conjugado com as dificuldades dc meios dc comunicação ou com outros factores atendíveis». E, nessa altura, será o próprio tribunal a dcslocar-sc. Mas será o tribunal no seu
todo: é o tribunal que dirigiu o processo, o tribunal com lodos os juízes, isto é, é o conjunto do tribunal estruturado na sua organização que vai ao local, ou porque o próprio local exige a sua presença, ou porque as dificuldades da deslocação ou a natureza específica da acção o exigem.
Portanto, creio que, de um lado, a lei, ao definir, do ponto dc vista filosófico e teorético, uma opção, o fez naquilo que me parece ter sido a melhor corrente dc decisão ncsie momento, c, por outro lado, ao dar-se conta das dificuldades do pomo de vista antropológico, sociológico, que a solução criaria, não deixou dc encontrar no artigo 85.fl a resposta que permite criar o equilíbrio entre aquilo que é um desejo teórico c aquilo que são as dificuldades dc implantar na prática a consecução desse desejo teórico.
Evidentemente que quando sc põe o problema dc direitos reais é óbvio que, havendo necessidade dc fazer o julgamento no local, é o tribunal que vai ao local fazer o julgamento.
O que sc pode dizer é que a experiência dos corregedores nunca foi posta cm causa, mas, infelizmente, há muita coisa na administração da justiça portuguesa que nunca foi posia cm causa c que talvez devesse sê-lo. Não estou a pensar cm qualquer tipo dc perseguições ou dc análises críticas sensórias. Aliás, creio — é um juízo pessoal, mas permilam-mc dizê-Io — que muiuis vezes perdemos muito tempo à procura dc culpa, quando devíamos concentrar à procura das causas. As culpas tendem sempre a ser subjectivadas e a porem-nos uns contra os outros, enquanto as causas, porque são objectivadas, normalmente deixam-nos no mesmo lado para analisar aquilo que nelas merece ser analisado cm lermos dc possibilidade dc mudança.
Ora, há muita coisa na administração da justiça portuguesa que deve ser reflectida c mudada. Sc vamos pegar no sistema legislativo dc organização judiciária c vamos arranjar um outro papel celofane que embrulhe o mesmo sistema, possivelmente ele brilhará dc forma mais incandescente, mas continuará a não funcionar. No fundo, o grande problema é que, antes dc resolvermos um problema dc eficácia da justiça, temos dc resolver o problema dc fundo, que é o problema da justiça. Temos dc começar por fornecer ao sistema judiciário instrumentos capazes dc administrar bem a justiça, c a seguir iremos procurar soluções para o problema da eficácia, que é muito importante. Agora o que não podemos é hesitar naquilo que, no fundo, nos vai dar a grande afirmação cm termos de implementação teórica do sistema.
É curioso verificar quem, há relativamente pouco tempo, contestava os tribunais dc instância c quem, dc alguma maneira, os contesta hoje — há aqui uma inflexão completa que, devo dizer, me escapa um pouco.
É que, realmente, continuo a ver os tribunais dc ins-lância, concretamente os tribunais dc círculo, como o grande salto qualitativo c o grande salto cultural da organização judiciária portuguesa.
Dir-mc-üo que é uma perspectiva cultural, não antropológica, porque, no fundo, é uma perspectiva cultural superior, filosófica c especulativa, mas não é assim. Há pouco o Sr. Deputado Agostinho dc Sousa referiu, por mero acaso — é também por mero acaso que o cito —, a situação dc Monção. Pergunto-lhe quantas querelas sc irão julgar cm Monção. Aliás, as próprias acções ordinárias a julgar lá serão também poucas. No fundo, cada uma delas terá uma pessoa, que irá uma vez a tribunal, donde rcsulia que esse aspecto gravoso sc lhe põe uma vez na vida. Isto contra todos os ouiros aspectos gravosos, que são, no quotidiano dos dois corregedores, o terem que sc deslocar sistematicamente a Monção, a Valença, a Melgaço...