22 DE FEVEREIRO DE 1997
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O desfecho do processo ocorreu em conformidade com orientação de não abertura a alterações, sintetizada durante o debate em Plenário:
A posição do Governo é muito clara: face a este Código não altera, sequer, uma palavra. [Ministro da
Justiça, Diário da Assembleia da República, 1 .* série, n.° 76, p. 2468.]
Não ocorreu consulta pública em matéria de interrupção
voluntária da gravidez nem foram notórias formas de mobilização social a favor ou contra a alteração do quadro legal.
As propostas do PS e do PCP mencionadas foram — como todas as demais — rejeitadas em Comissão, pondo termo ao breve momento de fiscalização parlamentar.
B — Conteúdo da reforma de 1994-1995. —Todavia, a nova redacção adveniente da reforma penal veio introduzir diversas alterações ao regime jurídico português do aborto (e deixou intactos outros aspectos, apesar de ter sido aventada a sua mudança), com relevância distinta mas significativa em certos casos.
Em síntese:
A) Eliminou-se o aborto como crime contra a integridade física da mulher grávida (foi mantido tão-só como crime contra a vida intra-uterina).
Na reforma penal de 1982, ao prever o aborto como crime contra a integridade física da mulher (na alínea c) do artigo 143.°e, por remissão, nos artigos 145°, n.K 1 e 2, 146.°, n.°2, e 148.°, n.°3], o legislador suscitou um intrincado problema de interpretação jurídica, assim eliminado. Com alcance prático: quem fere mulher grávida, que, na sequência, venha a abortar, é punível nos termos do artigo 139.°? Ou, antes, nos termos do artigo 143.°? Ou é punível, em concurso verdadeiro ideal heterogéneo, pela prática de dois crimes? No termo de longa análise, um especialista pronunciou-se pela seguinte solução:
O único modo de garantir a efectiva aplicabilidade das duas incriminações consistirá em atender à orientação principal do dolo do agente. Se este visar em primeira linha (por exemplo, a título de dolo directo) a ofensa corporal e só acessoriamente a ofensa contra a vida intra-uterina (a título de dolo necessário ou eventual), será punível pela prática do crime previsto na alínea c) do artigo 143." do Código Penal. Se, pelo contrário, o agente dirigir a sua acção contra a vida intra-uterina e só instrumental ou consequencialmente contra a integridade física da mulher grávida, apenas será punível pela prática do crime previsto no artigo 139." [Rui Pereira, O Crime de Aborto e a Reforma Penal. AAFDL, 1995, p.43).
Teresa Beleza, descrevendo a reforma penal de 1994--1995, dá breve notícia da «eliminação do aborto como caso de ofensas corporais graves» nos termos seguintes: «absurdo legislativo» irresolúvel, apesar de tentativas várias (por exemplo. Rui Pereira, O Crime de Aborto, 1994); «tipo doloso com um caso preterintencional «enxertado», a história /egislativa parece ser essa».
A solução adoptada em 1982 tem génese difícil de explicar: não constava do anteprojecto da parte especial do Código Penal nem se menciona a questão nas actas das sessões da comissão revisora do Código Penal — parte especial (1979), pp. 61 e segs. Nos debates na especialidade da Lei n." 6/84 foi aceite sem discussão a dualidade de incriminações. No caso do Deputado ora relator, tal aceitação decorreu do facto de não parecer vantajoso — segundo critérios
de impacte político — sugerir uma diminuição da protecção à mulher grávida. Mas nem tal deveras decorre da eliminação, nem a argumentação fundada no receio do perverso impacte mediático de certas opções penais é um critério saudável de legiferação. No caso, a nova opção não teve, de resto, qualquer impacte.
A diferente punição do aborto consentido e não consentido assegura suficientemente a protecção da integridade física e da liberdade da mulher e a agravação pelo resultado
tutela a mulher face a riscos físicos criados pelo acto de abortar (artigo 141.°), pelo que teve plena justificação a alteração adoptada.
B) A «exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez» por indicações de carácter terapêutico, eugénico e ético foi substituída pela sua «não punibilidade».
No âmbito académico foram suscitadas dúvidas sobre se não se teria pretendido «deixar em aberto a questão de saber se nas hipóteses previstas o aborto não é punível por ser atípico (em nome da ideia de inexigibilidade de que se prevalece a jurisprudência alemã), ou por ser justificado (não sendo passível de censura penal), ou por ser desculpável (não sendo passível de censura penal), ou, finalmente, por faltar uma condição objectiva de punibilidade (ditada por razões de mera oportunidade político-criminal)» — Rui Pereira, op. cit., p. 105. Interrogando-se sobre o mesmo tema, Teresa Beleza: «Os casos de licitude de interrupção voluntária de gravidez foram rebaptizados de 'exclusão de punibilidade'; poderá haver legítima defesa, contra a vontade da mulher grávida?» («Como uma manta de Penélope»: sentido e oportunidade da revisão do Código Penal, 1995, acessível via Internet em httpv://www.smmp.pt/Penal.htrn/).
A solução foi, porém, adoptada pelos diversos intervenientes (incluindo os que, como os Deputados do PS e PCP, apresentaram propostas próprias nas quais integraram uma epígrafe contendo essa expressão), sem que dela fluísse qualquer modificação das consequências jurídicas das soluções em vigor. Dentro dos limites consabidos, a lei continua a conceder autorização para que a interrupção voluntária da gravidez seja praticada em estabelecimentos de saúde com determinadas características. O médico que a executa não está sujeito a legítima defesa alheia quando age nos termos da lei (como estaria se a «não punibilidade» fosse tomada como mera causa de desculpa ou de impunibilidade na acepção mais estrita destas expressões). A alteração não propicia, pois, qualquer habilitação jurídica para iniciativas como as que em certos estados norte-americanos têm conduzido a graves episódios de alvejamento de médicos que executam abortos, a título de «legítima defesa alheia». O artigo 3.° da Lei n.°6/84, ainda em vigor, reconhece, de resto, à mulher o direito de «solicitar a interrupção da gravidez em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido», devendo entregar «logo o seu consentimento escrito e, até ao momento da intervenção, os documentos ou atestados médicos legalmente exigidos».
Q Foi significativamente alargado o âmbito da indicação ética
A Lei n°6/84 consagrou essa indicação nos termos seguintes:
1 — Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.