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22 DE FEVEREIRO DE 1997

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colectiva, seja qual for o lado da fronteira em que cada um se situe» (op. cit., p. 17). Tal é precisamente o sentido da lei, mas não a prática em todos os casos;

Por défice de coordenação inter-hospitalar surgem situações em que se toma inexequível a prática atempada de actos de interrupção autorizados pela lei;

É insuficiente o aconselhamento propiciado pelo sistema;

A articulação entre os diversos níveis de cuidados de saúde é deficiente;

Os serviços não contribuem de forma bastante para colmatar o défice de informação pública sobre os exactos contornos da lei.

E — Os indicadores relativos a mortes maternas revelam «uma redução significativa do total do número de mortes [Purificação Araújo, Mortes Maternas em Portugal, 1979-1993, p. 6, em que diz que no período de 1979-1983 registaram-se 166 mortes; entre 1989 e 1993 houve 59. As três principais causas são: complicações de aborto, hemorragia e pré-èclampsia/eclampsia. No mesmo estudo refere--se que, «em particular, as complicações do aborto não têm tido a redução ambicionada, embora em números absolutos tenha havido uma diminuição de 38 casos, em 1979-1983, para 14, em 1989-1993» (p. 7), e isto é tanto mais grave quanto ocorre num contexto dé decréscimo da taxa de natalidade e de diminuição do número de partos (d. Mortalidade Infantil Perinatal e Materna, 1990-1994, Direcção-Geral da Saúde, 1996)] entre a década de 80 e a década de 90, mas também uma clara incapacidade de reduzir as sequelas e complicações do aborto na proporção que o legislador desejou e que decorre da lei.

A Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança sublinhou no decurso de audição parlamentar:

Estes números são para nós, profissionais de saúde, extremamente chocantes. Além de que estas mortes entram dentro da classificação das mortes evitáveis, classificação esta bastante desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde ultimamente. Apesar de, recentemente, o número de mortes ter diminuído no seu conjunto, em 1994 ocorreram 10 mortes — 3 delas provocadas por aborto, o que significa que um terço dessas mortes teve como causa o aborto. E, embora ainda não o tenha dito, é óbvio que estou a referir-me ao aborto clandestino. Em nenhum país europeu — e eu tenho estado a trabalhar num estudo de mortalidade e de morbilidade materna a nível da União Europeia — o peso das complicações pelo aborto é semelhante ou aproximado do nosso. Por isso, embora as taxas de mortalidade materna tenham melhorado, continuamos a ocupar um lugar muito desfavorecido em relação aos outros países europeus, precisamente porque temos este peso em cima de nós — as complicações resultantes do aborto clandestino.

O problema é extraordinariamente mais grave no que diz respeito aos grupos de maior risco, os das adolescentes. Verificamos, por exemplo, a partir de estudos realizados a nível da Direcção-Geral da Saúde, nos quais me empenhei, que num período de cinco anos, entre 1979 e 1983, realizaram-se 38 abortos, 8 dos quais no grupo etário dos 15 aos 19 anos. Penso que isto não pode acontecer, isto é, que 8 jovens, entre os 15 e os 19 anos, morram por causa das complicações de um aborto!

Foram precisamente diagnósticos tão inquietantes como o agora citado que estiveram na base do movimento que conduziu à reforma de 1984.

Útil será sintetizar os objectivos que o legislador se propôs e a visão global que fundou a reforma para podermos suscitar interrogações sobre o que produziu resultados positivos e o que fracassou.

IV — Da L«i n.° 6/84 à reforma penal de 1994-1995

1 — O fim do sistema vindo do Código Penal de 1852

Em 1984, Portugal alterou um regime de incriminação plena do aborto que, em substância, atravessou intacto o estertor da monarquia, a I República, o hiato ditatorial e um decénio de regime democrático.

A norma incriminadora do Código Penal de 1852 transitou, com ligeira alteração de dosimetria, para o Código Penal que vigorou a partir de 1886 — numa linguagem reveladora, o preceito punia «aquele que, de propósito, fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este fim violência ou bebidas, ou medicamentos ou qualquer outro meio».

Quase um século depois, a reforma penal de 1982 manteve os contornos do regime punitivo.

Não tiveram projecção legal os esforços doutrinais desenvolvidos desde os anos 60, no sentido de salvaguardar a licitude do aborto terapêutico, por forma a proteger a vida ou a integridade da mãe [Boaventura Sousa Santos, «L'interruption de la grossesse sur indication médicale en droit penal portugais», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1967; Jorge Figueiredo Dias, «Lei criminal e controlo da criminalidade», Revista da Ordem dos Advogados, n.° 39, 1979; Manuel Costa Andrade, «O aborto como problema de política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, n.°39, de 1979. No seu ensino na Faculdade de Direito de Lisboa, Fernanda Palma procurou estruturar a protecção da mulher a partir do conceito de estado de necessidade previsto na parte geral do Código. Em sentido distinto e rejeitando essa abordagem, Teresa Beleza pronunciou-se a favor da despenalização da interrupção voluntária de gravidez, «acompanhada de todo o necessário investimento político e financeiro» para propiciar a igualdade mulher-homem no controlo da capacidade reprodutiva (Mulheres, Direito e Crime ou a Perplexidade de Cassandra, tese de doutoramento, Lisboa, FDL, 1990, p. 493)], apesar do significativo debate público já então encetado sobre as implicações da situação existente e os tabus que sobre ela pesavam.

O debate foi desencadeado na sequência da apresentação pelo PCP de três projectos de lei: n.re 307/TJ (Protecção e defesa da maternidade), 308/TJ (Garantia do direito ao planeamento familiar e educação sexual) e 309/n (Interrupção voluntária da gravidez) — Diário da Assembleia da República, n.°50, de 6 de Fevereiro de 1982. Inovador em relação a anteriores delimitações do problema, foi o tratamento conjunto e integrado das três matérias e o esforço para centrar o debate em tomo da maternidade livre consciente e voluntária (sendo o aborto visto sempre como um último recurso e não como direito absoluto ou substituto da contracepção). Recusou-se a hipervalorização do papel da tutela penal, com um argumento mais tarde melhor desenvolvido pelo conselheiro José Magalhães Godinho: «sob um ponto de vista jurídico-constitucional, a tutela penal há-de ser a última ratio das medidas culturais, económicas, sociais, sanitárias, e não um sucedâneo para a falta delas» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.°91/85, de 19 de Junho). Donde a prioridade dada a medidas de carácter social e mesmo cultura] (v. g. valorização da intervenção e dos deveres do pai), com preocupação de abrangência.