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30 DE JANEIRO DE 1999

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Relatório e parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida

Relatório

i — Introdução

1 — S. Ex.° o Secretário de Estado da Justiça, por ofício

ào^Dabimeó^lòeFevereiro-de remeteu ao

Sr. Presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), para parecer deste Conselho, no prazo máximo de 30 dias, um «projecto de decreto-lei que visa estabelecer o regime jurídico da dissecação lícita de cadáveres e extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e de investigação científica». Por decisão do CNECV em reunião realizada no dia seguinte, fui encarregado de apresentar um relatório que servirá de base à elaboração do parecer solicitado.

2 — A questão em apreço não é estranha ao CNECV, que, já em 4 de Dezembro de 1991 e por sua iniciativa, emitiu um «parecer sobre utilização de cadáveres humanos para fins de ensino médico e sua necessidade, pertinência e legitimidade (2/CNE/92)», a que se seguiu um aditamento datado de 5 de Fevereiro de 1992 — Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Documentação, vol. i (1991--1993), pp. 67-72, Imprensa Nacional-Casa da Moeda).

Porque não havia noticia de se estar a esboçar iniciativa legislativa neste domínio, o presidente do CNECV, em 28 de Março de 1994, enviou um ofício a S. Ex." o Presidente da Assembleia da República e a S. Ex." o Primeiro-Ministro, em que se declara que «o Conselho, em sua reunião plenária de 2 de Março próximo passado, deliberou analisar a questão, dentro da competência do artigo 2.°, n.° 1, alínea a), da Lei n.° 14/90, de 9 de Junho, e, no âmbito dessa análise; recomendar aos órgãos legislativos por excelência a prolação urgente de legislação no domínio em causa».

Em 9 de Maio de 1994, S. Ex." o Ministro da Saúde enviou ao presidente do CNECV, para parecer, um «projecto de proposta de lei que visa regular as situações em que é lícita a dissecação de cadáveres humanos ou de parte deles, após a morte cárdio-respiratória, bem como a extracção de peças, tecidos e órgãos para fins de ensino e de investigação científica». No ofício de remessa diz-se que o documento foi elaborado «na sequência da recomendação do Conselho Nacional de Ética sobre a utilização de cadáveres humanos para fins de ensino médico». Na sequência desta solicitação foi elaborado o parecer n.° 8/CNE/94, de 13 de Julho, de que fui relator.

A entrada do projecto de proposta de lei na Assembleia da República levou a que a respectiva Comissão de Saúde promovesse um colóquio parlamentar sobre «questões éticas e legais relativas à utilização de cadáveres para fins de ensino e investigação», que se realizou em 28 de Junho de 1994, na Sala do Senado do Palácio de São Bento. Infelizmente, o projecto de proposta legislativa nunca foi agendado.

Já com o actual governo em exercício, o CNECV, por ofício do seu presidente de 20 de Novembro de 1995, apresentou o assunto à consideração de S. Ex." o Primeiro-Ministro, que, por ofício do Sr. Chefe de Gabinete de 15 de Dezembro seguinte, informou que tinha sido dado conhecimento da exposição aos Ministérios da Ciência e da Tecnologia, da Educação e da Saúde.

Em 5 de Dezembro de 1996, a solicitação do Sr. Chefe de Gabinete de S. Ex." o Secretário de Estado da Justiça e em nome deste, é enviado o parecer n.° S/CNE/94 e o projecto de proposta de lei a que se refere. Em 13 de Outubro

de 1997, como não houvesse quaisquer noticias, o presidente do CNECV oficiou a S. Ex." dando parte da preocupação do Conselho e solicitando as informações tidas por convenientes.

3 — Pelo exposto, fica claramente demonstrado o persistente empenhamento do CNECV na produção de legislação

que promova e regule a utilização de cadáveres humanos

ou parte deles para fins de formação médica e de investigação científica.

ii — Reflexão ética sobre o projecto de decreto-lei

Considero que na elaboração do parecer ora solicitado deve ser tido em conta o exposto nos pareceres n.05 2/CNE/ 92 e 8/CNE/94.

Do ponto de vista ético, há divergência essencial entre o projecto de decreto-lei e o defendido naqueles pareceres no que respeita aos requisitos necessários para que seja permitida a dissecação de cadáveres para os fins previstos.

Nos pareceres do CNECV antes referidos a utilização de cadáveres para ensino e investigação requer que a pessoa tenha manifestado conscientemente essa vontade, não sendo reconhecido a quem quer que seja o direito de, após a morte do dador, anular a sua decisão. Só no caso de cadáveres não reclamados é legítima, ipso facto, a sua utilização para os fins previstos, excepto se em vida tiver havido manifestação em contrário, na forma legal prevista.

No projecto de decreto-lei a decisão cabe a quem é reconhecido o direito legal de reclamar o corpo, decisão essa que nunca pode contrariar eventual declaração da pessoa a opor-se a que o seu cadáver venha a ser utilizado.

Por outras palavras:

No entendimento do CNECV a utilização do cadáver para ensino e investigação deve ser expressão de solidariedade social da pessoa, manifestada clara, esclarecida e livremente, não sendo permitido impedir este desígnio, pois ninguém é proprietário de cadáver algum. No entendimento do projecto de decreto-lei o protagonista da tomada de decisão é quem tiver legitimidade para reclamar o cadáver, desde que «a pessoa não haja manifestado em vida, junto do Ministério da Saúde, a sua oposição [alínea a) do n.° 1 do artigo 3.°] nos termos do n.° 1 do artigo 5.°, a qual constará do Registo Nacional de não Dadores (n.° 2 do artigo 5.°).

Considero que o protagonismo da tomada de decisão, quanto ao destino do cadáver para ensino e investigação, deve caber, por direito próprio, à pessoa de que ele constitui agora os restos mortais, e por duas ordens de razões.

Por um lado, trata-se de decidir do destino do cadáver do «seu» corpo: não é ético reconhecer-lhe apenas o direito de negar a sua utilização e não o direito de a permitir, transferindo-se essa prerrogativa para outrem.

Por outro lado, é altamente conveniente que os cadáveres que alunos de anatomia dissecam estejam ali, para isso, por vontade de quem eles foram o seu próprio corpo. A este propósito, reproduzo um excerto da parte final do texto que apresentei no antes referido colóquio parlamentar, promovido pela Comissão de Saúde da Assembleia da República, realizado em 28 de Junho de 1994:

O encontro dos alunos de Anatomia — alunos do l.° ano do curso de Medicina — com o cadáver humano é, na esmagadora maioria dos casos, o primeiro embate directo com a realidade brutal da morte e, por ricochete, com a maravilha da vida, com o sentido da vida. É que, sem sentido pessoal que a oriente, dinami-