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II SÉRIE-A — NÚMERO 33

ze, reconforte e alegre, a vida é desvida: suporta-se, carrega-se, ilude-se, aliena-se, destrói-se.

Sê ô álunô àè Afiâtórhiâ Sâbê quê âquêlê éôfflô â,ue vai dissecar está ali porque pertenceu a alguém de

quem nada se sabe, que foi para ali porque pertencia

a um pária que ninguém acolheu, ele tenderá a não ver nesse corpo mais que uma estrutura morta — uma coisa.

Mas se esse corpo está ali porque a pessoa de quem ele foi expressamente o quis, em benefício daqueles que, uma vez médicos, dedicarão a sua vida ao serviço dos outros, a situação é completamente diferente.

Aquele cadáver que ali está e que ele, aluno, vai dissecar, já não é um morto, visto que o gesto explicativo desse encontro exprime, revela, a pessoa que esse corpo foi e agora se entrega à pessoa concreta dele, aluno, se lhe oferece com confiança para que o retalhe e desvende até ao âmago. Confiança de entrega que é confissão ciciada a dizer-lhe que essa pessoa que aquele corpo foi está segura de que esse/essa jovem o irá «tratar» com respeito, ternura e competência e que corresponderá ao gesto magnífico da dação utilizando os conhecimentos adquiridos para que venha a ser médico capaz no conhecer e no agir, no saber pensar e no saber comportar-se, um médico atencioso, compassivo e dedicado. O cadáver humano será, assim, simultaneamente, o primeiro doente e o primeiro mestre do aluno de Medicina.

Lirismo?

Os professores norte-americanos Sandra L. Bertman e Sandy C. Marks, Jr., muito empenhados, desde há anos, na utilização dos cadáveres humanos na formação humanista dos alunos de Medicina durante a sua passagem pelos laboratórios de anatomia, têm apresentado, em diversas publicações, numerosos exemplos ilustrativos. Numa delas — The disseection experien-

ce as a laboratory for self-discovery aboul death and dying: another side of clinicai anatomy.Clin anatomy, 1989, 2, pp. 103-113 — transcreve-se o testemunho de um aluno, a propósito da recordação mais memorável do seu curso de Anatomia:

Tenho já quase concluída a dissecção do corpo de uma mulher de 71 anos que morreu de cancro do pulmão. Embora por vezes não seja agradável separar, cortar ou retirar partes do cadáver, eu faço-o de boa vontade e sem remorsos ou sentimentos que me perturbem. Antes de tudo, . ... não é a mulher ela mesma que está a ser dissecada. É o corpo que ela ocupava para manter a vida terrena. Bem sei que as coisas não são assim tão simples.O ^ue sobreleva todos os meus outros pensamentos e sentimentos a respeito da dissecção é que essa mulher deu-me um presente. De sua própria vontade ela permitiu-me utilizar o corpo que já não usa para eu conseguir por ele o conhecimento que, espero, me habilitará a cuidar dos vivos. Ela deixou uma prenda de amor àqueles que ainda estão vivos neste mundo. A sua prenda é muito especial: uma prenda para os que ainda estão vivos. Por isso a respeito e admiro.

Eis aqui uma última e inestimável-utilização do cadáver doado em vida: o de educador de atitudes.

Acresce que, a caber às famílias a decisão de os cadáveres serem ou não utilizados para fins de ensino e investiga-

ção, não se atenuará o estado de penúria que, quanto ao ensino, desde há dezenas de anos se verifica em Portugal:

isto é, â (êi sêfá inútil.

Claro que não basta a lei para que os seus objectivos

sejam atingidos. A experiência de outros países mostra que

campanhas de sensibilização da opinião pública — persistentes, bem concebidas e efectivadas com competência, arte pedagógica e senso — são os meios fundamentais para que se possam atingir (mas só a médio prazo) os resultados visados [v. anexo (a)]. É óbvio que seria de muito mau gosto que os destinatários dessa sensibilização fossem os familiares dos futuros defuntos (aliás, todos nós somos uns e outros).

Aliás, não sei de país, com legislação neste domínio, que partilhe a perspectiva expressa no projecto de decreto-lei das legislações que conheço (Alemanha, Estados Unidos da América, França, Israel, Reino Unido, Suécia), todas adoptam o primado da vontade de quem quer que o seu cadáver venha a ser utilizado para estudo. É o que defendo no que concerne à legislação portuguesa.

Caso o CNECV, como espero, partilhe o meu ponto de vista, o seu parecer terá que propor a nova redacção para o n.° 2 do preâmbulo do projecto de decreto-lei, para o n.° 1 do artigo 3.° e para o artigo 12.°, e ainda que seja eliminado o artigo 5.°

Contudo, considero que, não tendo o falecido manifestado em vida, pelos termos estabelecidos, disposição contrária, seja admitida a legitimidade do consentimento de quem legalmente pode reclamar o cadáver: tal não significa o reconhecimento de propriedade, mas expressão de solidariedade face à importância social do fim em vista — trata-se, portanto, de uma atitude ética.

Algumas questões técnicas

Artigo 3." — não trata de «actos permitidos» (a eles respeita o artigo 1.°, como, aliás, refere o n.° 2 do artigo 4.°). Do que se trata é de cadáveres que podem ser dissecados.

Artigo 3.°, rr.° 1, alínea b) — a redacção utilizada induz a interpretação de que se trava de cadáver abandonado, o que não é o caso, como se diz no último período do n.° 2 do preâmbulo. #

Artigo 4.°, n.° 3 —prazo de oito dias é muitíssimo curto para possibilitar a utilização das técnicas de fixação indispensáveis para ulterior dissecção pelos alunos de Anatomia: o prazo não deve ser inferior a um ano (quatro meses de fixação e oito de utilização).

Artigo 8.°, alínea d)— sugere-se que se explicite a necessidade de identificação dactiloscópica, fotográfica ou antropomórfica, a fim de serem evitadas dúvidas a respeito da identidade do falecido.

Lisboa, 3 de Março de 1998. — O Relator, Joaquim Pinto Machado.

(a) O anexo será publicado oportunamente.

Parecer I — Introdução

1 — Em 2 de Fevereiro último S. Ex." o Secretário de Estado da Justiça solicitou o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre um «projecto de decreto-lei que visa estabelecer o regime jurídico da dissecação lícita de cadáveres e extracção de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e de investigação científica».