0830 | II Série A - Número 027 | 03 de Outubro de 2002
PROJECTO DE LEI N.º 118/IX
CRIA O PROJECTO-PILOTO DE PRESCRIÇÃO MÉDICA DE HEROÍNA
Exposição de motivos
A aprovação, em 2000, da alteração legislativa que descriminaliza o consumo de substâncias ilegalizadas veio contribuir para aprofundar a discussão sobre novas soluções para o problema da toxicodependência. A perspectiva defensora da repressão sobre os consumidores tornou-se claramente minoritária, quer entre os médicos e especialistas que lidam de perto com a realidade quer entre os Deputados da Assembleia da República. Importa, portanto, prolongar e estabilizar essa nova política de prevenção, de redução de danos e de combate à toxicodependência.
Portugal é o país da União Europeia onde é proporcionalmente maior o consumo de drogas "duras", como a heroína, onde a SIDA e outras doenças infecto-contagiosas crescem e afectam uma percentagem da população maior do que o resto da União Europeia, sendo que a grande maioria dos infectados é toxicodependente e é essa a causa da infecção. Apesar destes resultados serem divulgados ano após ano, não existiu até agora um sinal claro dos vários governos para tomarem medidas concretas que contrariem a catástrofe e promoverem medidas preventivas de redução de riscos.
E mesmo este padrão de consumo das chamadas drogas duras tem vindo a mudar substancialmente, sem que os meios e os serviços de saúde estejam preparados para acompanhar a evolução. Os toxicodependentes já não são exclusivamente os heroinómanos de há 10 anos. O policonsumo de estupefacientes - para que o Bloco de Esquerda alertava no preâmbulo do projecto de lei n.º 113/VIII - tem vindo a enraizar-se nesta população, e a "mista" (mistura injectável de cocaína e heroína) há muito ganhou terreno nos hábitos de consumo de heroína, com todos os perigos que daí advêm. A possibilidade de manipulação das substâncias é agora ainda maior do que antes e as falsas overdoses continuam a matar quem consome estas drogas na clandestinidade.
É esta situação que determina o Bloco de Esquerda a levantar de novo este debate: à medida que a heroína vai perdendo hoje o seu potencial de atracção junto da população mais jovem, tal como aconteceu no resto da Europa na década de 90, a capacidade dos traficantes em dar outra apresentação à substância - manipulando-a de acordo com critérios de rentabilidade e não de segurança para quem consome - vai certamente manter os lucros, as cumplicidades e as mortes dos únicos que nada têm a ganhar com o negócio. Por isso mesmo, é urgente articular uma estratégia coerente que permita aumentar o nível de informação, melhorar a prevenção e integrar os toxicodependentes no sistema de saúde, permitindo a esperança do tratamento e do fim da dependência.
Orientar os toxicodependentes para o âmbito do sistema público de saúde é uma responsabilidade à qual o Estado não deve nem pode furtar-se. Não basta incluir no Orçamento do Estado um conjunto de verbas para campanhas publicitárias a que se reduz a prevenção, com resultados escassos. Não basta criar CAT (Centros de Atendimento a Toxicodependentes) pelo País para que, depois de ultrapassada a longa lista de espera, o consumidor não tenha alternativa na capacidade de tratamento em comunidades terapêuticas, a menos que esteja disposto a pagar alguns milhares de contos pelo tratamento completo em instituições privadas. Não basta nem é admissível que o Estado português se demita da sua responsabilidade no tratamento e prefira subsidiar generosamente os empresários das desintoxicações em vez de estabelecer uma política coerente que acompanhe os toxicodependentes antes de entrarem na fase em que não vêm outra saída e então decidem regressar aos consumos.
Por estas razões, a prescrição médica de substâncias hoje ilegalizadas, como o são a heroína ou a cocaína, permite que o toxicodependente seja acompanhado por quem conhece o seu metabolismo, garante a qualidade da substância que lhe é administrada e elimine os riscos de contágio de hepatites ou HIV através dos materiais utilizados. Mais ainda: o acompanhamento mantém em permanência a porta aberta para o tratamento, que deve ser valorizado e que é sempre o objectivo fundamental de toda a intervenção médica contra a toxicodependência.
Outra razão existe, também ligada à saúde pública e à segurança das pessoas, para desenvolver esta política de prescrição e acompanhamento médico - o toxicodependente abrangido por esta medida não terá necessidade de roubar para adquirir a substância. A diminuição da pequena criminalidade e a reintegração destes toxicodependentes na sociedade é outro dos objectivos das medidas que o Bloco de Esquerda propõe.
Em termos de concretização destas medidas, o Bloco de Esquerda defende a criação de um projecto-piloto, tendo como base uma pequena amostra da população toxicodependente em Portugal - 300 pessoas em três distritos -, que avance a par de um plano de recenseamento voluntário do conjunto desta população, devendo ambos estar em funcionamento num prazo de um ano após o arranque. Após elaborado o recenseamento, necessariamente voluntário, das e dos toxicodependentes, e após avaliação da experiência de prescrição médica, esta poderá ser alargada a todos os recenseados que a desejem, se tal for a conclusão das entidades que tutelam a iniciativa.
Esta medida tem sido, aliás, defendida não só por profissionais de saúde, em particular muitos dos envolvidos no tratamento de toxicodependentes, como ainda por agentes destacados do processo judiciário. O Dr. Carlos Rodrigues Almeida, Juiz de Direito na 4.ª Vara Criminal, em Lisboa, publicou recentemente um estudo, Uma abordagem da política criminal em matéria de droga, em que defende este ponto de vista:
"Há, de resto, que continuar a aumentar a oferta terapêutica, quer em regime ambulatório quer em regime de internamento, não se podendo esperar que os débeis e ambivalentes propósitos de recuperação de um heroinómano persistam ao longo dos meses que dura, em muitas instituições, o tempo de espera por uma primeira consulta.
Temos, porém, que reconhecer que nem sempre a conjuntura é propícia para se despertar a motivação necessária para o tratamento e nem sempre são favoráveis as perspectivas abertas. Dada a situação de dependência física e forte dependência psíquica, todos temos consciência de que, inevitavelmente, em muitos casos, o toxicodependente prosseguirá o consumo. Assim, parece claramente preferível que o Estado forneça gratuitamente droga de qualidade garantida, em dosagem conhecida, para o consumo desse toxicodependente do que, fechando os olhos, espere que ele se abasteça e a consuma num bairro degradado, quantas vezes lesando, para tanto, terceiros, que possa morrer de overdose ou que seja infectado ao partilhar seringas.