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II SÉRIE-A — NÚMERO 12

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luta para garantir um acesso real e efetivo ao aborto legal, gratuito e em segurança é uma luta imensa,

conturbada, que ainda não terminou. Os avanços legislativos das últimas décadas neste âmbito resultaram da

mobilização de movimentos feministas pró-escolha, que se insurgiram contra uma sociedade patriarcal que

negava, à mulher, o seu direito ao corpo, e reforçaram que a erradicação do aborto clandestino é, antes de mais,

uma questão de saúde pública.

Até 1984, o aborto era uma prática inequivocamente proibida em Portugal. No entanto, a criminalização deste

ato não implicava a sua erradicação; antes, as mulheres que procuravam interromper a sua gravidez viam-se

remetidas à clandestinidade, forçadas a recorrer a técnicas perigosas, violentas e degradantes.27 Na década de

1970, estimava-se que os valores (incertos) do aborto clandestino se situavam entre os 100 000 e os 200 000

por ano, 2% dos quais terminavam em morte. O aborto era a terceira causa de morte das mulheres.28

Durante a ditadura do Estado Novo, a ideologia conservadora, católica e pró-natalista vedou o acesso ao

planeamento familiar e à contraceção. Este paradigma alterou-se com a Constituição de 1976, no período pós-

revolução, que assegurou o direito ao planeamento familiar e atribuiu ao Estado o «dever de divulgar o

Planeamento Familiar e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam essa mesma paternidade

consciente».

Em 1984, surgiu a Lei n.º 3/8429 (Educação sexual e planeamento familiar) e, eventualmente, a Lei n.º 6/8430,

segundo a qual a interrupção voluntária da gravidez passava a ser permitida em determinadas e restritivas

circunstâncias, nomeadamente nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e irreversível para

a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto ou quando a gravidez resultasse de

violação. Em 1997, esta legislação sofreu uma ligeira alteração, através do alargamento do prazo para

interromper a gravidez nos casos de malformação fetal ou violação.

Apesar destas alterações legislativas, o diploma aprovado foi alvo de interpretações limitativas, tendo-se

verificado que muitos estabelecimentos hospitalares optavam por não o aplicar ou escolhiam fazê-lo apenas

seletivamente, considerando algumas das situações previstas como fundamentos válidos para recorrer à IVG,

e outras não31. Em 1999, uma percentagem ínfima das interrupções voluntárias da gravidez (1 a 2%) eram

realizadas ao abrigo desta legislação32. Para averiguar do impacto desta alteração legislativa, a Associação para

o Planeamento da Família (APF) realizou um inquérito cujos resultados indicaram que, ainda em 2005, teriam

sido realizados cerca de 17 mil abortos clandestinos em Portugal.

No dia 11 de fevereiro de 2007, somente 33 anos após a Revolução de Abril, foi realizado um (segundo)

referendo33 sobre a interrupção voluntária da gravidez, e o «sim» saiu vencedor. Em consequência, foi publicada

a Lei n.º 16/2007, de 17 de abril34, que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez, estabelecendo que esta

não seria punível desde que fosse «realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez»

[cfr. alínea e) do artigo 142.º do Código Penal]. Todavia, este diploma estabeleceu, de igual forma, a

obrigatoriedade de um período mínimo de reflexão de três dias, a garantia à mulher de «disponibilidade de

acompanhamento psicológico durante o período de reflexão» e de «disponibilidade de acompanhamento por

técnico de serviço social, durante o período de reflexão», bem como o direito do pessoal médico à objeção de

27 Em Novas Cartas Portuguesas, as autoras descrevem, com bastante detalhe gráfico, os abortos clandestinos:

«E morreu, por fazer um aborto com um pé de salsa, morreu de septicemia, a mulher-a-dias que limpava o escritório onde trabalho, e soube depois, pela sua colega, que era o seu vigésimo terceiro aborto. E contou-me, há anos, uma amiga minha, médica, que no banco do hospital

eram tratadas com desprezo as mulheres que entravam com os seus úteros furados, rotos, escangalhados por tentativas de abortos caseiros, com agulhas de tricot, paus, talos de couve, tudo o que de penetrante e contundente estivesse à mão, e que lhes eram feitas raspagens de útero a frio, sem anestesia, e com gosto sádico, ‘para elas aprenderem’. Aprenderem o quê, com um raio?! Aprenderem que

sobre elas cai, mascarada de fatalidade do destino, a contradição que a sociedade criou entre a fecundidade-exigida-do ventre da mulher e o lugar-negado-para as crianças?»

(BARRENO, HORTA, COSTA, 2017, p.205). 28 Manuela Tavares, Feminismos em Portugal (1947-2007). Tese de doutoramento, Lisboa, Universidade Aberta, 2008. 29 Em: Lei n.º 3/84, 1984-03-24 – DRE. 30 Em: Lei n.º 6/84, 1984-05-11 – DRE. 31 Em A Situação do Aborto em Portugal – Práticas, Contextos e Problemas, Associação para o Planeamento da Família (APF), 2007. 32 Rosa Monteiro, A descriminalização do aborto em Portugal: Estado, movimentos de mulheres e partidos políticos, Análise Social, 204, XLVII (3.º), 2012. 33 O primeiro referendo sobre a despenalização do aborto (interrupção voluntária da gravidez) realizou-se a 28 de junho de 1998, tendo a pergunta sido: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».A abstenção foi de 68,11%, tornando o referendo não vinculativo. 50,9%

dos portugueses posicionou-se do lado do «não» e 49,1% optou pelo sim.34 Em: Lei n.º 16/2007, 2007-04-17 – DRE.