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II SÉRIE-A — NÚMERO 100

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da vítima, por exemplo através de um acesso indevido ao seu computador ou ao seu telefone móvel ou ainda

graças ao aproveitamento de situações de vulnerabilidade ou inconsciência da vítima, que está sob o efeito de

álcool ou drogas ou a dormir. Em outras hipóteses a pessoa é filmada ou fotografada enquanto está a ser vítima

de um crime como o crime de violação. São ainda conhecidos casos de sobreposição do rosto da vítima a

imagens pornográficas anteriormente produzidas.

As imagens íntimas cuja divulgação não foi consentida podem ser objeto de publicação online, por exemplo

nas redes sociais ou em sites dedicados à pornografia, nomeadamente a de vingança, mas podem também ser

divulgadas por vias mais tradicionais, como a partilha de fotografias ou filmes num determinado círculo de

pessoas, que podem ser próximas da vítima, por exemplo familiares ou colegas de escola ou de trabalho.

Em Portugal, estas condutas podem constituir um crime contra a reserva da vida privada (o crime de devassa

da vida privada está previsto no artigo 192.º do Código Penal e as penas aí previstas podem ser agravadas nos

termos do artigo 197.º) ou podem consubstanciar um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º do

Código Penal, caso o agente cause danos físicos ou psicológicos, através da divulgação não autorizada de

imagens íntimas, a alguém com quem tenha (ou tenha tido) uma das ligações descritas na norma incriminadora.

O primeiro problema suscitado por esta iniciativa legislativa prende-se, portanto, com a intenção de passar a

subsumir a conduta num tipo legal de crime inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e

autodeterminação sexual. Tal solução contraria, como também já se notou no Parecer do Conselho Superior da

Magistratura apresentado na legislatura passada a propósito de iniciativa semelhante, a tendência «na maioria

dos países europeus da família jurídica a que pertence o direito português», onde a conduta em apreço

«continua a ser classificada como crime de violação de privacidade». Refere-se, aliás, que tanto a Alemanha

como a França ou a Espanha «inserem, nos seus sistemas penais, este tipo de condutas nos crimes de violação

da privacidade/intimidade do indivíduo, vendo como bem jurídico protegido o direito à privacidade, à dignidade

e reputação».

Não se vislumbra de que modo a divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham nudez

ou ato sexual possam ofender em primeira linha o bem jurídico da liberdade sexual, enquanto direito que toda a

pessoa tem à «autoconformação da vida e da prática sexuais (…): cada pessoa adulta tem o direito de se

determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto às práticas a que se dedica, seja quanto ao momento

ou lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto

que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas continta(m). Se e quando esta liberdade for lesada

de forma importante a intervenção penal encontra-se legitimada e torna-se necessária». Aquilo que os crimes

contra a liberdade sexual visam proteger é uma «livre e própria conformação da vida (na esfera sexual)»3.

Por ser assim, a divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham nudez ou ato sexual,

sempre que tal ato sexual tenha sido praticado de forma livre, não pode ser enquadrada como crime contra a

liberdade sexual, devendo realçar-se a ideia de que os bens jurídicos ofendidos são os atinentes à

privacidade/intimidade – manifestação do fundamental right to be let alone sobre o qual, já em 1890, escreveram

Warren e Brandeis na Harvard Law Review. O que se pune é a indiscrição, «independentemente da verdade ou

inverdade da imputação e do carácter desonroso dos factos objeto de devassa». O que se pretende proteger é

«a liberdade que assiste a cada pessoa de decidir quem e em que termos pode tomar conhecimento ou ter

acesso a espaços, eventos ou vivências pertinentes à respetiva área de reserva»4.

2. O crime de divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham nudez ou ato

sexual como crime público.

Um segundo e especialmente relevante problema posto por esta iniciativa legislativa prende-se com a opção

feita no sentido de tornar público o crime de divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham

nudez ou ato sexual.

Não é, aliás, por acaso que, no direito comparado, por exemplo no direito espanhol, se dispõe

expressamente, no artigo 201.º do Código Penal Espanhol (no Título X – Crimes contra a intimidade, o direito à

3 Cfr. Jorge de FIGUEIREDO DIAS, Anotação ao artigo 163.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, págs. 715 e 716. 4 Cfr. Manuel da COSTA ANDRADE, Anotação ao artigo 192.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, págs. 1040, 1041 e 1043.