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12 DE OUTUBRO DE 2022

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imagem própria e à inviolabilidade do domicílio), que «para proceder pelos crimes previstos neste capítulo será

necessária a participação) da pessoa ofendida ou do seu representante legal».

Os desvios ao princípio da oficialidade (ou seja, a existência de crimes cujo procedimento criminal depende

de queixa) têm sido explicados fazendo apelo a vários critérios, nomeadamente a menor gravidade de certos

ilícitos, a qual tornaria desnecessária a intervenção punitiva estadual se o ofendido a não reclamar, supondo-se

ainda que o reduzido desvalor da conduta não causa significativo abalo comunitário. Mas, por outro lado e

mesmo em crimes mais graves, a exigência de queixa configura-se ainda como um reconhecimento da

autonomia da vontade do ofendido em não ver expostas no processo penal questões que, por serem

eminentemente atinentes à sua intimidade ou à sua privacidade, poderiam com a sua revisitação num processo

penal indesejado levar a uma intensificação ou a uma revisitação da ofensa. Ou seja: os crimes particulares em

sentido amplo não são, necessariamente, apenas os crimes menos graves. Haverá casos em que se poderá

entender que, apesar da manifesta gravidade do crime, a existência do processo criminal deverá depender da

queixa do ofendido, mormente porque um processo indesejado lhe causará uma desproporcionada vitimização

secundária e porque o seu interesse na modelação da resposta ao crime é preponderante face ao interesse

comunitário na punição.

A opção sobre a natureza processual de vários crimes voltou a ser objeto de controvérsia político-criminal, a

propósito de crimes como a coação sexual e violação, relativamente aos quais se vem assistindo a uma

tendência para o fortalecimento da componente pública ainda que, paradoxalmente, com o argumento da

necessidade de proteção da vítima concreta.

Todavia, de forma propositadamente simplificada, pode afirmar-se que um crime deve ser público quando o

interesse comunitário na persecução penal se sobrepuser ao interesse do concreto ofendido na existência ou

não de um processo penal e que, pelo contrário, um crime deverá ser particular em sentido amplo sempre que

se dever outorgar preponderância à vontade do ofendido quanto à existência do processo penal, secundarizando

o interesse comunitário. Sob este enfoque, parece paradoxal que, para proteção dos interesses das vítimas

adultas de crimes contra a reserva da vida privada ou íntima se outorgue ao crime uma natureza pública. Pior:

acredita-se que há vários motivos para recear que esta se revele uma opção contraproducente à luz dos

interesses das vítimas destes crimes.

Não é por se ver nestes crimes condutas menos graves que se optou por fazer depender de queixa o

procedimento criminal – com algumas exceções, nomeadamente quando tais crimes forem praticados contra

menores. Podem existir crimes graves em que o legislador conclui que a resposta punitiva não deve dar-se com

alheamento pela vontade do ofendido, precisamente porque as características da infração e a sua atinência a

espaços de intimidade são adequadas a gerar uma vitimização secundária que deve considerar-se inaceitável.

A ponderação das vantagens associadas a não atribuir carácter sobretudo público a certos crimes não se funda,

pois, na afirmação da menor gravidade das condutas, mas sim, pelo contrário, na verificação de que tais

condutas muito graves devem merecer a resposta pública alcançada através do processo penal sempre que –

mas apenas quando – as vítimas o não considerarem insuportável.

No âmbito do Conselho da Europa, foi adotada em 2011 a Convenção de Istambul – Convenção para a

Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica5, aprovada através da

Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro. Esta Convenção contém um conjunto de

disposições que parecem indiciar uma preferência pelas soluções punitivas em detrimento de outras respostas

que possam ser mais desejadas pelas vítimas, o que não deixa de ser questionável. Entre essas disposições,

conta-se o artigo 48.º, sob a epígrafe «Proibição de processos alternativos de resolução de conflitos ou de

pronúncia de sentença obrigatórios»: «1. As Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se

revelem necessárias para proibir os processos alternativos de resolução de conflitos obrigatórios, incluindo a

mediação e a conciliação em relação a todas as formas de violência abrangidas pelo âmbito de aplicação da

presente Convenção» – a única interpretação que se julga cabida (e que é, para mais, coerente com o argumento

literal) é que esta disposição apenas interdita os processos alternativos de resolução de conflitos que sejam

obrigatórios, ou seja, não queridos pelas vítimas. Também com relevância para a ponderação de um assunto já

referido – o da opção pela natureza pública ou semipública nos crimes tradicionalmente associados à violência

5 Sobre o âmbito desta Convenção e sobre a possibilidade de «levantar algumas questões de compatibilidade constitucional (…) num sistema de Direito Penal dito de intervenção mínima», cfr. Teresa BELEZA, «Consent – it’s as simple as a tea: notas sobre a relevância do dissentimento nos crimes sexuais, em especial na violação», Combate à Violência de Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Coord. Maria da Conceição Cunha, Porto: Universidade Católica Editora, 2016, pág. 18.