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II SÉRIE-A — NÚMERO 100

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contra as mulheres –, dispõe-se no artigo 55.º da Convenção de Istambul, sob a epígrafe «Processos ex parte

e ex officio», que «1. As partes deverão garantir que as investigações das infrações previstas nos artigos 35.º,

36.º, 37.º, 38.º e 39.º da presente Convenção ou o procedimento penal instaurado em relação a essas mesmas

infrações não dependam totalmente da denúncia ou da queixa apresentada pela vítima, se a infração tiver sido

praticada no todo ou em parte no seu território, e que o procedimento possa prosseguir ainda que a vítima retire

a sua declaração ou queixa». A nova redação dada ao n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal – e a possibilidade

de em certas situações o Ministério Público desencadear oficiosamente o processo criminal – parece

salvaguardar o respeito por esta prescrição no que tange aos crimes contra a liberdade sexual.

Na doutrina portuguesa, deve ter-se em conta o entendimento nomeadamente de Pedro Caeiro, muito crítico

quanto «à expropriação de direitos da vítima», com o Estado a arrogar-se «o direito de se substituir às vítimas

em decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas». O autor pronuncia-se expressamente contra

projetos de lei que «propõem certas soluções que representam objetivamente uma perda de direitos por parte

da vítima, na medida em que – no intuito de a protegerem contra si própria – lhe retiram o poder de decidir sobre

a instauração do procedimento penal (…). Subjacente a estas soluções está a pressuposição – fundada – de

que a vítima destes crimes se encontra muitas vezes fragilizada, quando não pressionada ou coagida, e que,

portanto, o Estado não deve deixar totalmente nas suas mãos direitos cujo exercício, em último termo, pode

impedir a administração da justiça e ser prejudicial para a própria. Todavia, a forma como o Estado pretende

arrogar-se o direito de se substituir às vítimas em decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas

contrasta flagrantemente com o discurso de empoderamento das mesmas e de promoção da sua autonomia.

Na verdade, estas propostas não nos parecem necessárias, nem legítimas»6.

No parecer do Conselho Superior da Magistratura apresentado na legislatura anterior a propósito de iniciativa

legislativa semelhante, e cuja linha argumentativa se retoma no parecer agora apresentado, apesar de se

reconhecer que a consagração de um crime como público ou particular constitui uma opção de política criminal,

não deixa de se recordar o pensamento de Jorge de Figueiredo Dias sobre os termos em que essa opção deve

ocorrer: «a existência de crimes semipúblicos e estritamente particulares serve a função de evitar que o processo

penal, prosseguindo contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente,

ou mesmo inadmissível, intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes

processuais intercedem». Nesta medida, os crimes semipúblicos servem «a função de específica proteção da

vítima (ofendido) do crime», dando-se como exemplo «os crimes que afetam de maneira profunda a esfera de

intimidade daquela. Quem seja vítima de um crime que penetre profundamente em valores da intimidade (…)

deve poder, em princípio, decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal do desvelamento

da sua intimidade e a consequente estigmatização processual (…)». Aduz-se, naquele parecer, que «tal não

significa que não possa atribuir-se natureza pública, por exemplo, aos casos em que o crime seja praticado

contra menor ou deles resultar suicídio ou morte da vítima». Também no parecer do Conselho Superior do

Ministério Público se suscitam dúvidas quanto à consagração de uma natureza pública («a vítima, que já tem a

sua esfera de intimidade violada, poderá querer optar por ultrapassar a violação ocorrida de modo extra

processo, evitando segundas vitimizações que a investigação e o desenrolar do processo poderão acarretar»),

apesar de se reconhecer que tais dificuldades surgem mitigadas pela possibilidade de suspensão provisória do

processo.

A criação de um regime de suspensão provisória do processo em moldes semelhantes aos já previstos para

a violência doméstica não considera as especificidades que distinguem a violência doméstica da disseminação

não consensual de conteúdos íntimos que é alheia à existência, presente ou passada, de um relacionamento

afetivo.

3. A desvalorização das medidas necessárias para fazer cessar a divulgação não consentida de

fotografias ou vídeos que contenham nudez ou ato sexual

Um dos principais problemas inerentes a esta conduta desvaliosa é a possibilidade de a intromissão na esfera

de privacidade ou intimidade da vítima se perpetuar através da subsistência das imagens ou gravações em

6 Cfr. Pedro CAEIRO, Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 29, n.º 3, 2019, p. 668 e seg. (a publicação tem na base as observações enviadas ao Grupo de Trabalho – Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência Doméstica, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, como complemento da audição que teve lugar a 31 de maio de 2019.