O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

II SÉRIE-A — NÚMERO 194

18

propósito de crimes como a coação sexual e violação, relativamente aos quais se vem assistindo a uma

tendência para o fortalecimento da componente pública ainda que, paradoxalmente, com o argumento da

necessidade de proteção da vítima concreta.

Quanto aos crimes de coação sexual e de violação, passou desde 2015 a dispor-se no n.º 2 do artigo 178.º

do Código Penal que «quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de

queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver

tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe»5.

De forma propositadamente simplificada, pode afirmar-se que um crime deve ser público quando o interesse

comunitário na persecução penal se sobrepuser ao interesse do concreto ofendido na existência ou não de um

processo penal e que, pelo contrário, um crime deverá ser particular em sentido amplo sempre que se dever

outorgar preponderância à vontade do ofendido quanto à existência do processo penal, secundarizando o

interesse comunitário. Sob este enfoque, parece paradoxal que, para proteção dos interesses das vítimas

adultas de crimes de coação sexual e de violação, se outorgue ao crime uma natureza pública. Pior: acredita-

se que há vários motivos para recear que esta se revele uma opção contraproducente à luz dos interesses das

vítimas destes crimes.

Não é por se ver nos crimes contra a liberdade sexual crimes menos graves que se optou por fazer depender

de queixa o procedimento criminal – com algumas exceções, nomeadamente quando tais crimes forem

praticados contra menores. Podem existir crimes graves – como o crime de violação – em que o legislador

conclui que a resposta punitiva não deve dar-se com alheamento pela vontade do ofendido, precisamente porque

as características da infração e a sua atinência a espaços de intimidade são adequadas a gerar uma vitimização

secundária que deve considerar-se inaceitável. A ponderação das vantagens associadas a não atribuir carácter

sobretudo público a crimes como o de violação não se funda, pois, na afirmação da menor gravidade das

condutas, mas sim, pelo contrário, na verificação de que tais condutas muito graves devem merecer a resposta

pública alcançada através do processo penal sempre que – mas apenas quando – as vítimas o não considerarem

insuportável.

No âmbito do Conselho da Europa, foi adotada em 2011 a Convenção de Istambul – Convenção para a

Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica6, aprovada através da

Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro. Esta Convenção contém um conjunto de

disposições que parecem indiciar uma preferência pelas soluções punitivas em detrimento de outras respostas

que possam ser mais desejadas pelas vítimas, o que não deixa de ser questionável. Entre essas disposições,

conta-se o artigo 48.º, sob a epígrafe «Proibição de processos alternativos de resolução de conflitos ou de

pronúncia de sentença obrigatórios»: «1. As Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se

revelem necessárias para proibir os processos alternativos de resolução de conflitos obrigatórios, incluindo a

mediação e a conciliação em relação a todas as formas de violência abrangidas pelo âmbito de aplicação da

presente Convenção» – a única interpretação que se julga cabida (e que é, para mais, coerente com o argumento

literal) é que esta disposição apenas interdita os processos alternativos de resolução de conflitos que sejam

obrigatórios, ou seja, não queridos pelas vítimas. Também com relevância para a ponderação de um assunto já

referido – o da opção pela natureza pública ou semipública nos crimes tradicionalmente associados à violência

contra as mulheres –, dispõe-se no artigo 55.º da Convenção de Istambul, sob a epígrafe «Processos ex parte

e ex officio», que «1. As Partes deverão garantir que as investigações das infrações previstas nos artigos 35.º,

36.º, 37.º, 38.º e 39.º da presente Convenção ou o procedimento penal instaurado em relação a essas mesmas

infrações não dependam totalmente da denúncia ou da queixa apresentada pela vítima, se a infração tiver sido

praticada no todo ou em parte no seu território, e que o procedimento possa prosseguir ainda que a vítima retire

a sua declaração ou queixa». A nova redação dada ao n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal – e a possibilidade

de em certas situações o Ministério Público desencadear oficiosamente o processo criminal – parece

salvaguardar o respeito por esta prescrição.

Em síntese: acautelada a possibilidade de, nos termos no novo n.º 2 do artigo 178.º, o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo em nome do interesse da vítima, a manutenção da natureza semipública

5 Esta redação foi introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto. 6 Sobre o âmbito desta Convenção e sobre a possibilidade de «levantar algumas questões de compatibilidade constitucional (…) num sistema de Direito Penal dito de intervenção mínima», cfr. Teresa BELEZA, «“Consent – it’s as simple as a tea”: notas sobre a relevância do dissentimento nos crimes sexuais, em especial na violação», Combate à Violência de Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Coord. Maria da Conceição Cunha, Porto: Universidade Católica Editora, 2016, p. 18.