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30 DE OUTUBRO DE 2024

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A opção sobre a natureza processual de vários crimes voltou a ser objeto de controvérsia político-criminal a

propósito de crimes como a coação sexual e violação, relativamente aos quais se vem assistindo a uma

tendência para o fortalecimento da componente pública ainda que, paradoxalmente, com o argumento da

necessidade de proteção da vítima concreta.

Quanto aos crimes de coação sexual e de violação, passou desde 2015 a dispor-se no n.º 2 do artigo 178.º

do Código Penal que «quando o procedimento pelos crimes previstos nos artigos 163.º e 164.º depender de

queixa, o Ministério Público pode dar início ao mesmo, no prazo de seis meses a contar da data em que tiver

tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse da vítima o aconselhe»3.

De forma propositadamente simplificada, pode afirmar-se que um crime deve ser público quando o

interesse comunitário na persecução penal se sobrepuser ao interesse do concreto ofendido na existência ou

não de um processo penal e que, pelo contrário, um crime deverá ser particular em sentido amplo sempre que

se dever outorgar preponderância à vontade do ofendido quanto à existência do processo penal,

secundarizando o interesse comunitário. Sob este enfoque, parece paradoxal que, para proteção dos

interesses das vítimas adultas de crimes de coação sexual e de violação, se outorgue ao crime uma natureza

pública. Pior: acredita-se que há vários motivos para recear que esta se revele uma opção contraproducente à

luz dos interesses das vítimas destes crimes.

Não é por se ver nos crimes contra a liberdade sexual crimes menos graves que se optou por fazer

depender de queixa o procedimento criminal – com algumas exceções, nomeadamente quando tais crimes

forem praticados contra menores. Podem existir crimes graves – como o crime de violação – em que o

legislador conclui que a resposta punitiva não deve dar-se com alheamento pela vontade do ofendido,

precisamente porque as características da infração e a sua atinência a espaços de intimidade são adequadas

a gerar uma vitimização secundária que deve considerar-se inaceitável. A ponderação das vantagens

associadas a não atribuir carácter sobretudo público a crimes como o de violação não se funda, pois, na

afirmação da menor gravidade das condutas, mas sim, pelo contrário, na verificação de que tais condutas

muito graves devem merecer a resposta pública alcançada através do processo penal sempre que – mas

apenas quando – as vítimas o não considerarem insuportável.

No âmbito do Conselho da Europa, foi adotada em 2011 a Convenção de Istambul – Convenção para a

Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica4, aprovada através da

Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de janeiro. Esta Convenção contém um conjunto de

disposições que parecem indiciar uma preferência pelas soluções punitivas em detrimento de outras respostas

que possam ser mais desejadas pelas vítimas, o que não deixa de ser questionável. Entre essas disposições,

conta-se o artigo 48.º, com a epígrafe «Proibição de processos alternativos de resolução de conflitos ou de

pronúncia de sentença obrigatórios»: «1. As partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se

revelem necessárias para proibir os processos alternativos de resolução de conflitos obrigatórios, incluindo a

mediação e a conciliação em relação a todas as formas de violência abrangidas pelo âmbito de aplicação da

presente Convenção» – a única interpretação que se julga cabida (e que é, para mais, coerente com o

argumento literal) é que esta disposição apenas interdita os processos alternativos de resolução de conflitos

que sejam obrigatórios, ou seja, não queridos pelas vítimas. Também com relevância para a ponderação de

um assunto já referido – o da opção pela natureza pública ou semipública nos crimes tradicionalmente

associados à violência contra as mulheres –, dispõe-se no artigo 55.º da Convenção de Istambul, sob a

epígrafe «Processos ex parte e ex officio», que «1. As partes deverão garantir que as investigações das

infrações previstas nos artigos 35.º, 36.º, 37.º, 38.º e 39.º da presente Convenção ou o procedimento penal

instaurado em relação a essas mesmas infrações não dependam totalmente da denúncia ou da queixa

apresentada pela vítima, se a infração tiver sido praticada no todo ou em parte no seu território, e que o

procedimento possa prosseguir ainda que a vítima retire a sua declaração ou queixa». A nova redação dada

ao n.º 2 do artigo 178.º do Código Penal – e a possibilidade de em certas situações o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo criminal – parece salvaguardar o respeito por esta prescrição. Em

síntese: acautelada a possibilidade de, nos termos do novo n.º 2 do artigo 178.º, o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo em nome do interesse da vítima, a manutenção da natureza

3 Esta redação foi introduzida pela Lei n.º 83/2015, de 5 de agosto. 4 Sobre o âmbito desta Convenção e sobre a possibilidade de «levantar algumas questões de compatibilidade constitucional […] num sistema de direito penal dito de intervenção mínima», cfr. Teresa Beleza, «Consent – it’s as simple as a tea»: notas sobre a relevância do dissentimento nos crimes sexuais, em especial na violação, Combate à Violência de Género – Da Convenção de Istambul à nova legislação penal, Coord. Maria da Conceição Cunha, Porto: Universidade Católica Editora, 2016, p. 18.