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II SÉRIE-A — NÚMERO 124

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semipública destes crimes de coação sexual, violação e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência

praticados contra vítimas maiores de idade parece a única solução coerente com o recorte dado ao bem

jurídico que é a liberdade sexual e com o entendimento de que constitui inaceitável forma de vitimização

secundária a imposição de um processo criminal indesejado por uma vítima de um destes crimes que tão

flagrantemente contendem com a sua intimidade.

Na doutrina portuguesa, este é o entendimento sustentado nomeadamente por Pedro Caeiro, muito crítico

quanto «à expropriação de direitos da vítima», com o Estado a arrogar-se «o direito de se substituir às vítimas

em decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas». O autor pronuncia-se expressamente contra

projetos de lei que «propõem certas soluções que representam objetivamente uma perda de direitos por parte

da vítima, na medida em que – no intuito de a protegerem contra si própria – lhe retiram o poder de decidir

sobre a instauração do procedimento penal nos crimes de coação sexual e de violação[…]. Subjacente a

estas soluções está a pressuposição – fundada – de que a vítima destes crimes se encontra muitas vezes

fragilizada, quando não pressionada ou coagida, e que, portanto, o Estado não deve deixar totalmente nas

suas mãos direitos cujo exercício, em último termo, pode impedir a administração da justiça e ser prejudicial

para a própria. Todavia, a forma como o Estado pretende arrogar-se o direito de se substituir às vítimas em

decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas contrasta flagrantemente com o discurso de

empoderamento das mesmas e de promoção da sua autonomia. Na verdade, estas propostas não nos

parecem necessárias, nem legítimas». Por outro lado, sob o enfoque dos compromissos internacionais e da

avaliação a que a legislação portuguesa é objeto no âmbito do GREVIO, sublinha-se que «parece seguro que

a lei portuguesa cumpre perfeitamente o segmento do artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul, na parte

em que impõe aos Estados o dever de garantir que o procedimento pelos crimes de coação sexual e de

violação não dependa inteiramente da queixa da vítima», na medida em que, por força do novo n.º 2 do artigo

178.º do Código Penal, «a vítima nunca tem, em caso algum, um poder absoluto de impedir o início de um

procedimento penal por estes crimes, e é precisamente isso que a Convenção pretende» – aduzindo-se

enfaticamente que «a transformação da coação sexual e da violaçãoem crimes públicos não só não é exigida

pelo direito internacional como criará desnecessariamente casos de vitimização secundária, que obrigarão a

vítima a participar, eventualmente muitos anos depois dos factos, de um procedimento formal que ela não

deseja, e, no limite, a iniciar procedimentos penais em casos em que a própria vítima – ao invés do Ministério

Público – não se autorrepresenta como tal»5.

A iniciativa legislativa em apreço, porventura reconhecendo alguma pertinência a estas considerações,

procura mitigar a natureza pública que pretende ver atribuída ao crime admitindo que, depois da instauração

oficiosa do processo, haja um arquivamento do processo por mero requerimento da vítima. Chama-se, porém,

a atenção para a vitimização secundária decorrente da existência de um processo penal que a vítima não

quer, da criação para a vítima do ónus de se manifestar contra o processo e mostrar que a sua continuação é

contrária aos seus interesses, assim como o prejuízo para a credibilidade da justiça penal e para a realização

da justiça por força da existência ainda que breve de processos meramente simbólicos e que redundam em

arquivamentos ainda que no processo já existam indícios da prática de um crime.

PARTE III – Conclusões

1. A Deputada do partido PAN apresentou à Assembleia da República, em conformidade com o disposto

na alínea b) do n.º 1 do artigo 156, do n.º 1 do artigo 167.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da

alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º e do n.º 1 do artigo 119.º do Regimento da Assembleia da República (RAR), o

Projeto de Lei n.º 304/XVI/1.ª (PAN) – Consagra a natureza pública dos crimes de violação e outros crimes

contra a liberdade sexual, procedendo à alteração do Código Penal.

2. Com a presente iniciativa legislativa a Deputada do PAN visa consagrar a natureza pública dos crimes

de coação sexual, de violação, de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, de fraude sexual e de

procriação artificial não consentida, previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 163.º, 164.º, 165.º,

167.º e 168.º do Código Penal (CP), prever a possibilidade de arquivamento do procedimento a requerimento

5 Cfr. CAEIRO Pedro, Observações sobre a projetada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 29, n.º 3, 2019, p. 668 ss. (a publicação tem na base as observações enviadas ao Grupo de Trabalho – Alterações Legislativas – Crimes de Perseguição e Violência Doméstica, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, como complemento da audição que teve lugar a 31 de Maio de 2019.