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II SÉRIE -C — NÚMERO 17
já que, nos termos do artigo 168.1', n.° 1, alínea s), da CRP, a legislação sobre esta matéria é da exclusiva competência deste órgão, salvo autorização ao Governo:
1.* É o presente estatuto da freguesia, cujos contornos legais procurámos delimitar, juridicamente compadvel com o quadro constitucional e supralegal que enunciámos no n.° 1 desta petição?
2." E este estatuto redutor e limitativo exigido por quaisquer critérios de racionalidade e eficácia da actividade administrativa e é ele o mais ajustado à prossecução dos interesses das populações?
3.1 — A inconstitucionalidade por violação dos princípios constitucionais. — Relativamente ã constitucionalidade do actual estatuto da freguesia enquanto autarquia local, deve colocar-se uma questão prévia, que, não dizendo respeito à violação directa de uma determinada regra constitucional por parte de normas legais particulares, afecta, no entanto, a validade global desse estatuto. Pois, independentemente da necessidade de averiguar da constitucionalidade de cada uma das normas legais que integram o estatuto da freguesia, há que saber se a configuração da freguesia que concreta e praticamente resulta do conjunto de normas legais que a regem se conforma à natureza e contornos constitucionais da freguesia enquanto autarquia local.
E quando a questão se perfila, assim, de uma forma global, a resposta só pode ser negativa.
É que, quando a CRP não só garante a autonomia das autarquias locais como princípio fundamental estruturante da ordem jurídico-política (artigo 6°, n.° 1), como ainda eleva o princípio a limite material de revisão (artigo 288.°), a relevância deste tratamento não pode deixar de ler importantes consequências jurídicas. Ou seja, a CRP garante a existência de autarquias locais e, reforçando essa garantia — pleonastícamente, se se quiser—, impõe não apenas ao legislador ordinário mas ao próprio legislador da revisão constitucional uma existência autónoma das autarquias, o que tem um sentido de múltiplas consequências.
Em primeiro lugar, tem de significar o direito e a capacidade efectiva de a autarquia local prosseguir os interesses próprios da população respectiva. De resto, é exactamente a referência expressa a essa capacidade efectiva que consta da definição acolhida pelo artigo 3.u, n.° 1, da Carta Europeia de Autonomia Local, que, como vimos, integra o direito interno com valor supralegal e, logo, impõe-se juridicamente à observância do legislador ordinário.
Neste caso, se eventualmente subsistissem dúvidas quanto ao sentido constitucional da expressão «autonomia das autarquias locais», o intérprete obrigar-se-ia a recorrer à definição da Carta Europeia de Autonomia Local como instância densificadora do conceito constitucional. Além de que, na situação em apreço, toda a construção constitucional aponta igualmente para idêntico sentido de acolhimento desta dimensão de capacidade e poder efectivos ínsita no conceito de autonomia das autarquias locais. Desde logo porque a CRP integra as autarquias locais na estrutura do poder rx>litico (parte m da CRP) e ainda porque regula o regime das autarquias locais enquanto poder local (titulo vm da parte Di da CRP).
Ora só há verdadeiro poder local como dimensão própria de exercício do poder político quando, de acordo com a vontade política exoressa pelas populações através do mandato representativo que conferem aos eleitos locais, a autarquia tem um grau de autonomia e capacidade de
intervenção que se traduz em possibilidade efectiva de influir e moldar a vivência das populações locais.
Bastará, então, comparar a ambição legítima deste projecto constitucional de autonomia da autarquia local com o quadro de impotência que emana da actual situação das freguesias e cujos contornos traçámos no número anterior — situação em grande medida determinada ou condicionada pelas omissões e imposições legislativas do seu estatuto— para imediatamente concluirmos pela inconstitucionalidade de tal estatuto ou, no mínimo, pela necessidade de uma significativa inflexão dos seus princípios caracterizadores, no sentido de um alinhamento prospectivo com o programa constitucional.
Em segundo lugar, autonomia tem de significar independência da autarquia local, não apenas da orientação e conformação político-adininistrativa da parte dos órgãos estaduais como igualmente de idêntica tutela ou dependência relativamente a outras categorias locais, incluindo, quando seja o caso, as autarquias de grau superior. No caso concreto isso implica que não deve haver quaisquer vínculos de supremacia ou subordinação entre freguesias e município, qualquer relação hierárquica entre as duas autarquias locais. Dado que entre elas o elemento territorial e humano é sobre — posto e parcialmente coincidente, pode falar-se em autarquias de grau diferente e é desejável a institucionalização de uma articulação permanente das respectivas actividades, mas a sua existência enquanto autarquias locais plenamente autónomas é juridicamente irredutível.
De facto, quer da consagração constitucional da autonomia das autarquias locais (artigo 6.", n." 1, da CRP) quer da definição constitucional de autarquia local —e, logo, da freguesia— como pessoa colectiva territorial dotada de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artigo 237.°, n ° 2, da CRP) resulta que as colectividades territoriais administrativamente relevantes como autarquias locais não só têm interesses específicos como são constitucionalmente dotadas de uma vontade política própria capaz de os exprimir e prosseguir autonomamente através de órgãos próprios. Assim, mesmo quando o poder de autodeterminação da autarquia local se expresse num sentido divergente ou eventualmente oposto às opções polítiavadministrativas do Estado ou das autarquias locais de grau superior, aquele poder de autodeterminação é incompreensível, sem o que haveria o recotinecimeiuo de interesses próprios, mas não do poder e da capacidade de os prosseguir autonomamente.
Daí, no que à freguesia concerne, que a sua consagração constitucional como autarquia local implique necessariamente o reconhecimento jurídico, em toda a extensão, do princípio da sua autonomia, quer face ao Estado quer face ao município, enquanto reconhecimento da sua capacidade plena de autodeterminação e auto-regulação administrativas, observados que sejam — corno acontece com qualquer ente público— os limites impostos pela CRP, peia lei e pelos regulamentos das autarquias de grau superior.
Ora, bastará a simples leitura dos normativos legais que citámos no n." 2 para concluirmos sem dificuldades que, neste domínio, o actual enquadramento legal da freguesia está muito mais próximo de tratamento próprio de um ente sub e iníramunicipal —estatuto que lhe tora atribuído pelo Estado Novo — do que de reconhecimento como categoria de autarquia local que a Constituição Ge 1976 liie garante.
Não está em causa a autonomia orgânico-institucional, que, sem dúvida, e como não podia deixar Ce ser, se er.contra garantida ("), mas a autonomia funcional da freguesia