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II SÉRTE-C — NÚMERO 33

lugar-comum que deixarei de dizer que o Portugal do futuro vive já hoje nas crianças e nos jovens seus filhos.

É uma verdade elementar. Por isso também elementar se afigura a evidência de que o mais rendível investimento que um país pode fazer a longo prazo é o que tem como objecto os seus recursos humanos de amanhã. Sei que qualquer economista me acompanharia nesta asserção, que não desejo todavia seja entendida num sentido meramente económico. Porque o que está em causa, do ponto de vista em que me coloco, é a sociedade de amanhã como comunidade de homens livres, felizes quanto o consinta a condição humana, uma sociedade em que, para além da legalidade, a justiça se afirma em todas as suas dimensões.

6 — Falei atrás dos riscos que para os menores decorrem do próprio modo de ser que afeiçoa o nosso mundo. Não quero com isso acolher a visão pessimista que marca a velhice de alguns espíritos com que não me identifico, e segundo a qual o amanhã será sempre tão pior que o hoje quanto o hoje é pior que o ontem. No tempo que Deus já me deu viver, tive oportunidade de testemunhar transformações muito positivas que me confortam na convicção de que a história dos homens não é uma caminhada absurda, mas tem um sentido positivo, que julgo poder identificar com a afirmação do próprio homem. Mas não embarco no optimismo tonto que vê em toda a mudança um salto de qualidade positiva. «Menores em risco numa sociedade em mudança» é o tema genérico proposto à vossa reflexão neste seminário. Porque os riscos para os menores nunca são abstractos, há que identificá-los no concreto de cada sociedade e que enquadrar' nesse concreto os remédios que se propõem para combater os males detectados. Não gostaria que deste seminário resultassem mais umas quantas abstracções, quiçá muito sabiamente formuladas. Desejaria, sim, mesmo sem jogar no imediatismo de soluções fáceis, que a vossa reflexão fosse fértil de ideias concretas e concretizáveis, para que, a partir delas, algo de verdadeiramente palpável acontecesse como achega real para a solução de um problema complexo, que só por abordagens múltiplas pode ser solucionado — se algum dia o for.

7 — Folheando a história, verifiquei que a atenção da sociedade para com os menores é despertada pelo problema dos «enjeitados». Para eles se criou a roda em que eram «expostos». Expostos; entenda-se, à caridade pública.

Mudaram os tempos e com eles os problemas. Aparentemente já não há «enjeitados» e, desaparecida a «roda», deixou de haver também «expostos». Por mim não estaria tão seguro disso. É sintomático que, para designar uma larga faixa de menores em risco, se fale de «crianças privadas de meio familiar normal». Se bem virmos, o enjeitado outra coisa não era que uma criança «privada de meio familiar». Parece, pelo menos numa primeira abordagem, que existe, entre o passado e o presente, um denominador comum que é a família ou a falta dela. E ao reflectir nas alterações que o nosso tempo impôs ao meio familiar, sou tentado a pensar como será difícil identificar um meio familiar «normal». Por mim defini--lo-ia como o meio capaz de garantir à criança as condições de um crescimento são e equilibrado, até

à dimensão plena de pessoa livre em que nos definimos como homens.

Mas são tantas as condicionantes negativas que

marcam o tempo em que vivemos, que não sei se alguma criança encontrará, para a receber, um meio familiar «normal» no sentido em que o defini. Mais: a globalização das relações e a multiplicidade de interacções que caracterizam o nosso mundo, aconselham talvez que se alargue a noção de meio

familiar, de modo a incluir todos aqueles que podem

condicionar o desenvolvimento ao menor. Assim, cada criança que vem ao mundo pode bem ser considerada um «exposto» a pedir a ajuda de todos. Porque, nesta aldeia global em que vivemos, todos somos responsáveis por todos.

8 — E, falando de expostos e de enjeitados, não posso deixar de evocar aqui, em singela homenagem, duas instituições, duas obras a quem o País muito deve, pelo muito que tem feito pelos menores em risco.

Refiro-me, em primeiro lugar, a essa instituição centenária que é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Por Carta Régia de 1543 lhe foram confiados os enjeitados da capital. E, desde então, nunca o cuidado de menores esteve arredado da sua acção, o que a credita como instituição portuguesa com mais experiência neste domínio. Os tempos mudaram, como disse, e com eles os problemas. Mas, denotando uma enorme capacidade de rejuvenescimento, também aquela veneranda instituição soube adaptar as suas respostas aos novos tempos, nomeadamente através da reforma que levou a cabo na década de 50, e entre cujos artífices desejo destacar o malogrado Dr. Mello e Castro e a felizmente presente Dr.° Raquel Ribeiro, que nos dá a honra de intervir neste seminário.

Em segundo lugar refiro-me à Obra da Rua, concebida pela inteligência arguta e ditada pelo coração grande desse homem extraordinário que foi o Padre Américo. Sem cursos de pedagogia, nem diploma de psicólogo, ensinou-lhe a sua intuição de homem bom a evidência de que o que realmente se impunha era oferecer aos rejeitados do mundo um «meio familiar» onde pudessem fazer-se homens. Pai Américo era como os meninos da rua chamavam ao fundador da Obra que os acolheu e que baseou toda a sua pedagogia e a sua acção na ideia que expressamente formulou de que «aqueles que perderam os pais não perderam de maneira nenhuma o gosto de serem filhos».

Julgo não atentar contra a especificidade das várias obras aqui representadas se a todas apontar como referência o espírito do Padre Américo.

9 — É tempo de terminar. Como Martin Luther King, também eu tenho um sonho que vós partilhais comigo, o sonho que a todos aqui nos trouxe.

Eu sonho com um mundo de homens livres e dignos em cujos rostos se espelhe a imagem do Deus que os criou.

Eu sonho com um mundo em que a justiça e a paz se beijem, de modo que esta seja o fruto daquela.

Eu sonho com um mundo sem violência nem discriminações; onde ninguém tenha que sofrer por causa da cor da pele, da diferença religiosa ou da origem social; onde a opulência de alguns se não afirme como afronta à miséria dos outros; onde a todos sejam garantidos não apenas o direito, mas as condições concretas para ser homem e viver como homem.

" Eu sonho com um mundo liberto das grilhetas de todas as opressões: sem meninos a chorar com fome

ou vítimas de maus tratos; sem meninos que não brincam porque lhes roubaram a alegria de serem