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II SÉRIE-C — NÚMERO 23

Embora com alguma impropriedade de citação, também do Estado se poderá dizer que existe «para servir e não para ser servido».

Independentemente do conceito de cidadania, vigente em cada época e situação social, ou que aqui se adopte como instrumento de delimitação de tema, o Estado surge sempre para responder às necessidades reais ou fictícias da comunidade.

Os meios pelos quais se exerce a satisfação dessas necessidades variam no tempo e no espaço, de acordo, inclusivamente, com as diversas experiências históricas de um mesmo tipo de Estado.

O entendimento que hoje damos aos modos legítimos de exercício de autoridade desenha-se a partir das Grandes Revoluções liberais, quase simultaneamente no Novo e no Velho Continente.

Nos finais de Setecentos, mas apenas consolidado no século seguinte, a percepção da separação de poderes como instrumento de garantia dos direitos dos cidadãos foi fulcral para a nova concepção da posição do Estado face ao seu substrato humano.

Recordo aqui o conteúdo do artigo 16.° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Aprovada naquele que, nas palavras inspiradas de Dickens foi «o melhor dos tempos e o pior dos tempos», como aliás todos os períodos revolucionários em geral, o sentido de tal proclamação, especificamente vertido na norma referida, era o de ligar a separação de poderes e a garantia de direitos fundamentais à própria ideia de Estado constitucional.

Doravante o Estado deixa de ser corporizado por uma só voz, abandonando-se a identidade entre a unidade do Estado e a unidade do seu poder político.

Surge um Estado a várias vozes, vozes essas legitimadas de vário modo, que, num jogo de «checks and balances», usando correctamente das competências previstas constitucionalmente, permitem uma transição definitiva e essencial no mecanismo de formação da vontade estadual. De um processo exteriormente heterogéneo mas essencialmente homogéneo, com modos de actuação diversos mas correspondentes a uma única manifestação de vontade, passa-se a um processo que, este sim, também é intrinsecamente complexo.

Ninguém se espante ou indigne com o facto de nunca perder ocasião de tentar visualizar e fazer encarar as várias questões do ponto de vista do Provedor de Justiça. É um exercício de pedagogia democrática que, mesmo hoje com duas décadas volvidas sobre a instauração da Democracia, se revela a cada passo bem necessária.

Instituição quase bicentenária, coeva da alteração substancial da natureza do Estado e o Cidadão, entre os interesses aparentemente conflituantes que tendem, no tráfico político-administrativo, a opor um ao outro.

E, nos quase dezanove anos que tem de história em Portugal, julgo poder afirmar que o Provedor de Justiça cumpriu para com o regime democrático a dívida resultante da sua adopção entre nós.

O Provedor de Justiça (adopto, por facilidade, a designação portuguesa) é um órgão constitucional do Estado, competindo-lhe, como uma das vozes desse mesmo Estado, contribuir para a formação da sua vontade final.

É corrente a ideia do Provedor de Justiça como um advogado do Cidadão face aos poderes públicos. Concordo com esta ideia, se entendida na sua máxima extensão.

Como os juristas aqui presentes bem saberão, a deontologia da advocacia, entre nós e neste particular recebida no Estatuto da Ordem dos Advogados, impõe aos

profissionais que se abstenham de patrocinar pretensões injustas ou que violem lei expressa. Esta imposição não pode entender-se se não num contexto pedagógico, de concretização da garantia do acesso ao Direito, na sua globalidade e entendida num carácter ausente de estreiteza de vistas judiciárias.

O acesso ao Direito, mais do que a garantia do acesso aos meios de tutela dos direitos subjectivos, pretende com que o Cidadão não veja o ordenamento jurídico como um corpo estranho, mas algo que lhe seja tão natural e intuitivo quanto possível.

Estranhará esta ilustre audiência tal pretensão numa era caracterizada pela metastização normativa, pela elevada tecnicidade do Direito e pela proliferação de normas em que os critérios do Justo e do Injusto estão bem remotamente situados. Mas é, em última análise, desta sensação

de Justiça da regulação normativa que radica a aceitação pela comunidade destinatária, rectius a sua eficácia.

A actividade do Provedor de Justiça insere-se nesta necessidade de aproximar o Cidadão e o Direito, na sua vertente de fundamento e limite da intervenção dos poderes púbücos.

Numa vertente positiva, compete ao Provedor de Justiça a elaboração de solicitações aos poderes públicos para que estes, no uso das funções legislativas, administrativas ou, por vezes jurisdicional, corrijam o que, por desconhecimento ou deficiente apreciação, carece de reformulação dos seus efeitos. O Provedor está, aqui, a exercer uma virtualidade pedagógica junto da entidade pública visada, arriscando em afirmar que se trata de mais um órgãos que auxilia a tomada de decisão ou a sua reponderação.

Numa vertente negativa, e sem que se possa atribuir ao Provedor de Justiça qualquer atribuição genérica de aconselhamento jurídico dos cidadãos, a verdade é que um passo mais para diminuição da conflitualidade social está na justificação dada ao reclamante das razões que justificam a bondade da actuação ou omissão alvo de queixa. Talvez seja uma surpresa para os que me escutam, já que a Comunicação Social apenas dá relevo a alguns (poucos) casos em que me decido pela formulação de Recomendação ou pedido de declaração de inconstitucionalidade, que a grande maioria das reclamações que entram nos meus Serviços são arquivadas, por se concluir não ser justificável qualquer actuação minha. E tenho a imodéstia de pensar que as razões desta não intervenção, dadas por um órgão independente do Estado, contribuem para que os cidadãos aceitem o Estado como seu servidor e não como seu amo.

Encontro, é claro, múltiplos exemplos de situações em que, por inadequada apreciação ou, felizmente com raridade, por má-fé, as entidades públicas não correspondem à missão de serviço que lhes incumbe.

Quando se nega a jovens candidatos ao ingresso no Ensino Superior a possibilidade de, sem subterfúgios, poderem com-transparência aferir da bondade e lisura do processo que tantas consequências pode acarretar para o seu futuro, sem dúvida que o Estado não está a colocar-se ao serviço do Cidadão.

Quando utentes de instituições públicas de saúde encontram a morte, a breve ou longo trecho, em vez da vida de qualidade por que anseiam, sem dúvida que o Estado não está a colocar-se ao serviço do Cidadão.

Quando o Estado pede um sacrifício aos seus nacionais, impondo-lhes uma prestação forçada de trabalho na Defesa Nacional, sem assegurar devidamente a sua segurança e integridade física, sem dúvida que o Estado não está a colocar-se aó serviço do Cidadão.