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II SÉRIE-C — NÚMERO 23
normal, preferencial e prototípico, a verdade — afirmava — é uma razão de justifícabilidade, mas ao lado de outras, a vontade das partes designadamente» (3)- Não se pense mal, contudo, deste mestre do processo civil. É que embora não comungando da ideia da subordinação do processo civil à verdade, pelo menos nos termos atrás referenciados, o Prof. Castro Mendes, já em 1961 na sua dissertação de doutoramento afirmava que o conceito da verdade formal deveria ser banido da ciência jurídica (6), e isto para que não fosse admitida uma realidade que verdade podia não ser.
Remate-se com as palavras do Prof. Barbosa de Magalhães que, já em 1940, informava que «o juiz moderno tem de empregar todos os esforços para chegar ao apuramento da verdade. Mas não é da verdade aparente, da verdade formal, de qualquer verdade — é da verdade real, da verdade verdadeira— da pura verdade, como diz o povo» (7).
Ao trazermos à colação o dever de verdade no processo civil, não podemos esquecer a dificuldade de entendimento deste conceito. Qualquer relato dos factos (seja oral ou escrito) implica da parte do emissor sobre o receptor uma «pessoalização» desse relato (foi intencionalmente que não se utilizou a expressão «subjectivação» do relato). Mas é este algo de subjectivo que não se pode aceitar. Como Karl Popper, diremos que «uma afirmação» é verdadeira «quando está de acordo com os factos, quando corresponde aos factos, ou quando as coisas são tal como a afirmação as exprime. É esta noção de verdade dita absoluta ou objectiva que todos nós usamos constantemente» (8). Há aqui a ideia de teoria da correspondência, que teve o seu primeiro defensor em Aristóteles. Wittgenstein afirma que o significado do discurso depende da Comunidade que o emite e da comunidade a quem é comunicada.
Não é nossa intenção problematizar ou realizar uma análise filosófica do conceito de verdade. Mas não podemos esquecer que a sua evolução é bastante complexa, quer de autor para autor, quer na própria linha evolutiva do pensamento de cada autor. C)
Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant, Heidegger, todos eles se debruçaram sobre o conceito da verdade. Tarski e a sua teoria romântica, o grupo subjecüvista onde se encontram autores como Habermas e Karl-Otto Apel, a perspectiva pragmática de Peirce, a teoria funcional-siste-mática da verdade de Luhmann, ou a teoria de Foucault segundo a qual o problema já não se deve colocar ao nível da verdade mas sim ao nível da coerência do discurso. Toda esta evolução (e apenas citámos alguns de entre muitos que se debruçaram e debruçam sobre o tema) demonstra quão ampla tem sido a discussão acerca do que é a verdade e, consequentemente, demonstra bem a dificuldade em saber o que é a verdade. Mas se nos demorámos um pouco mais, do que seria de esperar, acerca desta matéria, isso deve-se a considerarmos de fulcral importância toda a evoluçãpjnje o conceito de verdade tem tido, nomeadamente a sua projecção no direito processual civil moderno, que não pode ser entendido como um
(5) Pág. 15.
(«) Do Conceito da Prova em Processo Civil, pág. 401.
Ç) Estudos sobre o Novo Código do Processo Civil, vol. I, 1940, pág. 306-307.
{*) Em Busca de um Mundo Melhor, pág. 81.
(>) Por todos o relatório apresentado em 1987 para professor associado de Filosofia Contemporftnea, «Verdade e Argumentação», de Manuel Maria Carrilho, in Verdade, Suspeita e Argumentação, págs. 29 a 80.
campo onde as partes manipulam a seu belo prazer, sem terem em conta outros interesses que não os próprios. O processo civil com toda a importância que tem e merece não pode estar sujeito a ser utilizado levianamente.
Princípios supra-partes têm de ser tidos em conta, sob pena de farsa, e de entre eles é de destacar o da verdade. Mas a verdade absoluta tal como apontada por Karl Popper, cujo conceito reabilitado constitui um dos resultados mais importantes da lógica moderna.
Todavia, se a verdade verdadeira não pode andar afastada do processo civil moderno, então os factos que às partes levam ao processo, têm de ser provados, ou seja, tem de ser demonstrado que aqueles factos são verdadeiros, que correspondem à realidade. Não é a realidade que está errada, mas sim os factos apontados pelas partes que não correspondem à realidade, tal como são imputados.
A palavra prova tem sido entendida com vários significados, mas independentemente da acepção que se tenha em vista, é ponto assente que a prova e os problemas com ela correlacionados se ligam estreitamente aos mais importantes problemas de fundo, já que é ela própria um meio necessário à realização do direito.
Logo no início da sua obra, Pour sortir du vingiième siècle, Edgar Morin conta-nos uma situação que viveu e que se resume a ter presenciado um acidente de automóvel, em que o veículo passando um sinal encarnado, derrubou um motociclista que atravessava tranquilamente o verde. Quando se acercou dos condutores para testemunhar a favor do motociclista, o automobilista disse-lhe que fora o motociclista quem passara com o sinal encarnado e fora chocar com ele. Admirado, Edgar Morin prossegue o relato escrevendo, «no tocante à cor do sinal verifico que já não estou tão seguro, mas no que diz. respeito ao choque bem vi o automóvel a embater no duas rodas. O automobilista mostra-me o seu guarda-lamas esquerdo ligeiramente amolgado pelo choque. Não há dúvida que foi ele o atingido. Aliás o motociclista não desmentiu». Estando certo que vira bem, pouco depois a prova material invalidara a sua visão. E isto porque a sua percepção se ordenara imediatamente em função de uma aparente racionalidade: o pequeno fora derrubado pelo grande. Mais adiante, e após ter compreendido o seu erro, afirma tratar-se de uma experiência vulgar verificar tais erros de percepção nas testemunhas de acidentes de automóveis. «Excepto em
casos absolutamente flagrantes, em que um automóvel atropela um peão na passagem de peões, as declarações variam de testemunha para testemunha, em função não só do ângulo de visão, da existência de um factor visível a um e invisível a outro, mas também da emoção e do sentimento. Estes exemplos aparentemente menores, re-conduzem-nos — conclui — ao grande 'problema do testemunho» (10).
Se há casos, como sucede nos procedimentos cautelares, em que a nossa lei não exige e prova dos factos, contentando-se com a probabilidade séria da sua existência, ou -seja, a verosimilhança; na generalidade dos casos o que é pedido é a prova dos factos, ou melhor, que no espírito do juiz se forme a convicção da realidade de determinado facto. Repare-se assim na subtileza que há a operar. A testemunha pode afirmar que viu X a conduzir o veículo, sendo sincera (não mentindo) a sua afirmação de facto, e provar-se que esta não corresponde à realidade dos factos, porque o depoente confundiu, por exemplo X com o irmão
(10) Trad. portuguesa intitulada As Grandes Questões do Nosso Tempo, págs. 13-14.