O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

20 DE JULHO DE 1996

174-(269)

de uma verdadeira independência dos Tribunais, sujeitos que estão à vontade do Direito democraticamente fixado, mas livres de toda a influência ilegítima ou ilícita nos quadros desse mesmo Direito.

Estou certo que este livro, correspondendo aos generosos intentos do seu Autor, para tal contribuirá. Por isso e para isso, as minhas felicitações e encorajamento.

Intervenção do Provedor de Justiça no Colóquio «A Defesa do Cidadão face ao Poder», Auditório da Caixa Agrícola de Leiria, 5 de Abril de 1994.

A defesa do cidadão face ao poder é o título do colóquio sobre o qual me é pedido que me pronuncie.

O tema, como todos aqueles intrinsecamente ligados ao homem, é deveras aliciante. Mas, e há sempre um mas, como todos os temas que incidem sobre matérias fortes, há o risco do orador se perder dissertando sobre linhas gerais e princípios orientadores, não concretizando «algo» que seja de imediato mak perceptível e eficaz. É que quando o cidadão comum e anónimo fala em justiça, ele tem apenas em vista a justiça dó caso concreto, sem deveras se preocupar com os princípios norteadores de uma política de justiça.

Se não deve ser esta a linha de orientação de quem teve e tem por missão, dentro dos campos da justiça, algo mais do que a resolução casuística do problema, não nos devemos abstrair, contudo, dessa necessidade mais concreta e precisa do cidadão, que tem de ser satisfeita aquando da sua confrontação imediata com o poder.

Assim, na linha dos considerandos expostos, somos levados de imediato, mas sumariamente, a analisar as relações entre o cidadão e o poder, para em seguida centrarmos a nossa intervenção em algo de mais concreto.

Encontrando-se aqui presente na qualidade de Provedor de Justiça, lógica será a concretização, do tema geral do colóquio, por mim efectuada se centre sob a instituição que encabeço. Focarei pois a função e os poderes do Provedor de Justiça face à defesa dos direitos do cidadão.

Karl Popper, na nota introdutória à edição portuguesa da obra, O Poder — Uma Nova Análise Social, de Bertrand Russel, conta-nos a seguinte história. Por volta de 1989, um amigo de Karl Popper, perguntou-lhe qual era em sua opinião o melhor dos livros de Russel, não dedicados à matemática. Popper respondeu sem hesitação «Powen>. Isso é muito importante, disse-lhe o amigo. Fiz a mesma pergunta a Russel quando um dia viajámos juntos de táxi. Ele também respondeu, sem um momento de hesitação, que era «Power».

A explicação para essa coincidência de pontos de vista é muito simples. Por um lado o livro é objectivamente o melhor. Por outro lado, a matéria de que trata e deveras sedutora.

Com efeito, afirmar-se que os homens se regem pelo poder é, podemos dizê-lo, um lugar comum. E se não é inteiramente correcto o conteúdo de tal afirmação, não é por ser contrária à verdade, mas sim porque os homens, para além do poder, se regem por outros objectivos que acompanham aquele. O historiador alemão Fritz Stern na sua análise acerca da origem e ascensão do nazismo é extraordinariamente mordaz no seu veredicto, diz ele que a fome do poder enlouqueceu os Alemães, dos zés-ninguém como Hitler aos sábios como Heidegger.

Mas esta busca do poder e da glória tem de ser entendida e enquadrada nas diversas épocas e quadrantes da história. Daí o não ser hoje invulgar considerar a

evolução das sociedades demo-liberais, como a história de sucessivas tentativas de domesticação do poder através da lei e das instituições.

Aliás a obra de Russel atrás citada mais não é do que a apologia liberal da domesticação do poder, em que a busca do poder pelo poder se contrapõe a uma ética da realização individual.

Raif Dahrendorf vem desde uma das suas primeiras obras — Homo Sociologicus — a insistir na ideia de que não se deve confiar absolutamente na autoridade, porque dela se pode abusar horrivelmente.

O problema da domesticação do poder é um problema muito antigo. Já Confúncio nos contou a seguinte história:

Passando ao lado do monte Thai, Confúcio chegou ao pé de uma mulher que estava a chorar amargamente junto de uma sepultura. O mestre avançou rapidamente na direcção dela e interrogou-a. «O teu lamento», disse ele, «é o de alguém que sofreu penas». Ela retorquiu: «Assim é. Uma vez o pai do meu marido foi morto aqui por um tigre. O meu marido também foi morto e agora o meu filho morreu do mesmo modo.» O mestre disse: «Porque é què tu não deixas este lugar?» A resposta foi: «Aqui não há nenhum governo opressivo.»

Estamos assim face ao problema de garantir que o exercício do poder seja menos terrível do que os tigres.

M. Foucault, explicou muito bem no seu Vigiar e Punir (1976) as tecnologias de denominação que surgiram na época clássica e na Idade Moderna. Aí se relata como para as teorias absolutistas do Estado o seu objectivo não é legitimação dos direitos humanos, mas sim a fundamentação da concentração de toda a força nas mãos do soberano. A este compete erguer um aparelho centralizado da Administração Pública e favorecer um saber organizacional útil à Administração. O objecto desta nova necessidade do saber não é o cidadão com os seus direitos e deveres, mas o súbdito com o seu cargo e a sua vida.

M. Foucault utilizou a história passada para explicar o poder e as técnicas de dominação do mesmo. Não podemos nós esquecer aqueles autores que fazem a «história» futura e de entre os quais Orwell é o que mais se destaca. Ninguém como ele melhor «criou» a fundamentação e as técnicas de dominação do poder. Ninguém melhor do que ele assustou com o exercício do poder.

Sobre o que seja o poder, ou a dificuldade de dar contornos a esta noção, é algo que se afasta do objecto desta comunicação. Contudo é sintomática a dificuldade sentida por Maurice Duverger, ao analisar este conceito no seu estudo sobre a sociologia da política.

Mas se não é nossa finalidade o dissertar sobre o conceito de poder, há que tomar em linha de conta uma dada noção de poder, nem que seja em termos operativos, funcionais. É que a existência do poder não é em si mesmo algo de negativo, elé é até necessário. Se entendermos no conceito de poder o conjunto de poderes públicos e privados conjunto este mais vasto que o conceito do poder do Estado, que tem por finalidade, entre outras, o permitir o normal funcionamento da sociedade e a harmonia possível entre os seus membros; então aquando do desvio ou abuso desses fins coloca-se o problema do cidadão face ao poder. Mas não apenas na ultrapassagem a esse fins se coloca tal problema. Já antes na própria fundamentação do poder, e na legitimidade quer da existência quer do exercício desse mesmo poder se coloca tal questão.