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184 II SÉRIE - NÚMERO 8-RC

de resolver, a nível constitucional, os problemas relativos à protecção dos nascituros. Consequentemente, pretende-se com esta opção inviabilizar qualquer hipótese de o ordenamento jurídico vir a consignar o aborto como meio de interrupção da vida. Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Como o Sr. Presidente frisou, a proposta do CDS visa, à primeira vista, acautelar a vida dos fetos e impedir que através de práticas abortivas essa vida seja destruída, eliminada. Eu pensava que a actual disposição constitucional, ou seja, a expressão "a vida humana é inviolável", era suficientemente abrangente da situação, porque, em boa doutrina biológica, a vida começa no momento em que as duas células sexuais se unem, a partir do momento em que se forma um ovo. A partir desse momento há vida, pelo que a expressão "vida" não pode ser entendida como sendo a daquele ser que acabou de nascer, afastando-se do seu âmbito todo o processo que levou à configuração dessa criatura.

Assim, a expressão "vida" terá de ser entendida como abrangendo todo o processo que, iniciado com a fusão dos gâmetas sexuais, com a formação do ovo, tem em si potencialidades genéticas capazes de configurar uma criatura humana. A expressão actual da Constituição, estatuindo que a vida é inviolável, é, portanto, abrangente da vida na sua total expressão. Logo, e na minha opinião, o aborto constitui uma prática inconstitucional.

Ao propor este aditamento, o CDS quis certamente acautelar esta situação, desconfiando da abrangência desta expressão. Daí o sentido da sua proposta, que, em minha opinião, constitui uma redundância, ao fazer recuar, digamos assim, a defesa da vida ao momento da concepção. Penso - repito - que a expressão "vida" já engloba aquele momento.

De qualquer forma, se a Comissão considerar que é necessário esse preciosismo constitucional, em moldes de defesa da vida e dos princípios do humanismo e da ética, que defendo, e me acompanhar nessas preocupações, não vejo nada que obste a que a nossa lei fundamental contenha essa explicitação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Mário Maciel, é evidente que a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional se enriquece sempre com a participação de um biólogo. No caso concreto, não só acabámos de compreender melhor a sua designação para esta Comissão, como tivemos o primeiro momento de fruição dessa cooperação ou contribuição. Não veja nesta minha observação qualquer coisa de desprimoroso para além, naturalmente, da piada que tem o facto de lhe poder dizer isto.

Parece-me, no entanto, que a sua posição é inquietante. Tanto quanto me tinha apercebido, o PSD manteve uma prudente reserva sobre toda esta questão, vindo a sua posição, ao que parece, quebrar essa prudente reserva. O debate sobre enquadramento legal do aborto constitui uma questão debatidíssima entre nós, podendo-se dizer, tal como o Sr. Deputado Costa Andrade nos habituou a ouvir, que nesta matéria se oferece o mérito dos autos, os quais, no caso concreto, são verdadeiramente volumosos. A questão foi amplamente debatida entre nós, na Assembleia da República, legislatura após legislatura, tendo a penúltima culminado num quadro legal modestamente despenalizador e parcialmente legalizador, que, como se sabe, não é cumprido. Em todo o caso, dir-se-ia que entre nós a questão estava no ponto de estabilização relativa.

Logo que foi anunciada, a proposta do CDS foi rodeada de um clima de pouca expectativa. O CDS anunciou imediatamente que considerava a proposta perdida, mas que se tratava de usar, em relação ao PSD, não propriamente de tratos de polé, mas de avisos daqueles que você não pode desconhecer, como se costuma dizer na terminologia própria. Se o PSD não aceitasse, em sede de revisão constitucional, uma solução alteradora do quadro, o CDS apresentaria um projecto de lei e faria a vida negra ao PSD, confrontando-o com a sua posição incoerente na matéria. Eis um jogo que não tem qualquer mistério, naturalmente, da parte do CDS; o mistério era todo ele da parte do PSD.

A questão está, portanto, em saber se a intervenção do Sr. Deputado Mário Maciel significa a quebra do mistério ou se traduz meramente uma opinião pessoal, quiçá excessivamente influenciada por concepções biologísticas. Digo "biologísticas" de propósito e pela simples razão de que é evidente que é ponto altamente polémico o de saber o que significa "vida". Mas uma coisa seguramente se sabe: que "vida", do ponto de vista jurídico, pode não ser rigorosamente aquilo que é do ponto de vista biológico, qualquer que seja o conceito a adoptar deste ponto de vista. E, como V. Exa. sabe, seguramente melhor do que todos nós, em termos biológicos o conceito é arquidiscutido. Assim sendo, aquilo que acabou de exprimir não é absolutamente nada não polémico, mas, pelo contrário, altamente polémico, não sendo, seguramente, pacífico.

Quanto ao enquadramento jurídico, a noção jurídica de vida é ainda mais polémica. Em matéria de aborto, é-o ainda mais do que, em geral, quando se discutem temas tão melindrosos como os da fecundação in vitro, morte cerebral e outros aspectos relacionados com as funções vitais, quaisquer que elas sejam.

Portanto, a discussão sobre o conceito jurídico de vida é bastante mais complexa do que aquilo que V. Exa. parecia inculcar. E a interpretação da noção de vida contida no artigo 24.° é susceptível de várias leituras que compatibilizem, em absoluto, a legalização da interrupção voluntária da gravidez com o artigo respectivo. O nosso Tribunal Constitucional tem sobre essa matéria jurisprudência que é geralmente conhecida e a que V. Exa. pode ter acesso, uma vez que nos foram distribuídos os quatro volumes dos acórdãos deste Tribunal.

Quero dizer com isto que não vemos grande interesse no debate, a não ser talvez no sentido de saber qual a posição do PSD sobre esta matéria. A nossa posição é claríssima: somos pela interrupção voluntária da gravidez e consideramos que a sua consagração legal é perfeitamente compatível com a Constituição, não porque o valor "vida" seja um valor desprezível, mas porque há-de haver uma compatibilização entre a medida de tutela atribuível à mulher, para não a transformar num ser obrigado a uma gravidez compulsiva, e a medida a atribuir à vida em devir, que é a do nasciturno, como toda a gente mais ou menos sabe.