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14 DE JUNHO DE 1988 457

produzir quanto ao facto de não estar em condições de poder exprimir uma posição definitiva ou sequer largamente colectiva sobre esta questão, gostaria apenas de enunciar três ou quatro juízos provisórios e um juízo peremptório sobre esta maioria.

Os juízos provisórios são os seguintes: em primeiro lugar, nenhum de nós ignora que esta discussão se faz sob o pano de fundo do Acórdão n.º 423/87, publicado no Diário da Republica, n.° 273, de 26 de Novembro de 1987, nem ignora lambem que a acção governamental neste ponto conduziu já à elaboração do diploma que foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em diversos pontos. Refiro-me, naturalmente, ao Decreto-Lei n.° 323/83, de 5 de Julho, e às normas que, ao abrigo dessa matriz, tem vindo a ser emanadas. Sabe-se, lambem, que o Governo, longe de se conformar com o que decorria do acórdão do Tribunal Constitucional, reiterou a sua disposição de infringir o quadro constitucional aplicável em matéria de liberdade religiosa e chegou ao pomo de - naquilo que 6 uma atitude de rebelião face aos próprios poderes do Tribunal Constitucional - ensaiar normativos que retomavam e, em certos casos, acintosamente renovam soluções constitucionalmente censuradas.

Tudo isto se situa no terreno da lei ordinária e no da actuação governativa corrente, inconstitucional embora, e nada disto nos deveria ocupar excessivamente. Sucede que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia introduz, por essa via e neste momento, um debate com uma natureza cujo enquadramento nos trabalhos da CERC não pode ser aceite sem mais, isto é, sem alguma reflexão ulterior que, pela nossa parte, ainda não fizemos.

É que pode discutir-se se, à situação que está criada, a boa solução é abrir ou não um diálogo com a Santa Só, porque não colhe dúvidas que o preceito da Concordata sobre o ensino religioso nas escolas oficiais, se já em contrário à versão originária da Constituição de 1933, que foi revista, precisamente no sentido de suprimir esse escolho, e contrariaríssima à Constituição de 1976. Sobre isso não sobram dúvidas nenhumas. Também não há dúvidas de que em Portugal não existe uma "questão religiosa" e dúvida nenhuma há de que as relações com a Santa Se não tem, que saibamos, qualquer bulício ou trepidação e fluem com normalidade. Não está, portanto, colocado nada na nossa circunstância histórica que dificulte ou crispe o debate sobre esta matéria.

Mais ainda: não é líquido que ela lenha de se situar na esfera constitucional. Digo que não é líquido, mas dizer isto é dizer uma evidência porque, se a Constituição diz o que diz e se a Concordata, como instrumento do direito internacional, não e imune a fiscalização pelos órgãos de soberania competentes do direito interno português, se eles não estão tolhidos na sua acção por qualquer peia, se a determinação dos seus movimentos eventuais pode ser por eles próprios escolhido segundo os seus superiores critérios, estaremos nós sob constrangimento de qualquer facto que nos obrigue a deliberar nesta sede? Este é o primeiro aspecto a clarificar.

Em segundo lugar, do quadro constitucional fluem implicações que devem ser extraídas pelo legislador ordinário e, seguramente, pelo Governo, que não pode colocar-se numa postura de rebelião, de desvalorização e, menos ainda, de subsversão dos conteúdos constitucionais adquiridos. Há, portanto, que cumprir, pura e simplesmente, a Constituição nesta matéria! Aquilo que o Govêrno tem feito não é cumprir a Constituição, mas inverter o seu alcance num ponto que é sensível. Como os debates na Constituinte permitem apurar com clareza meridiana e razoável, o princípio da separação tem dimensões que permitem, quando muito, que o Estado autorize que as igrejas ministrem, elas próprias, nas escolas públicas, o ensino da sua religião àqueles que o desejem e apenas a esses, portanto, em termos completamente voluntários e independentemente de qualquer declaração escrita dos alunos ou dos seus responsáveis ou de qualquer anotação, menção ou averbamento nos currículos respectivos.

Isto resulta claro da lei fundamental - e aliás o Tribunal Constitucional alertou para este aspecto de forma cabal. Só que também se topa, a partir da análise da experiência constitucional, que o que isto implica em relação ao regime da Concordata e um grande conjunto de diferenças, desde logo porque o ensino da religião não é e não pode ser, a título nenhum, tarefa pública do Estado ou da escola pública, mas uma tarefa das igrejas e só delas. Por outro lado, a frequência do ensino da religião tem de ser facultativa e não pode senão sê-lo, não sendo para todos, mas só para aqueles, que exprimam a sua vontade nesse sentido e é absolutamente proibida qualquer cláusula do género: "O ensino é para todos, salvo para os que decretarem expressamente que não querem ser abrangidos por esse ensino." Isto é líquido e a experiência constitucional aflorou este ponto de maneira clara.

Além disso, o acesso das igrejas à escola pública não pode ser privilégio ou monopólio de qualquer religião e deve estar aberto às diversas confissões.

Sendo isto o que flui, neste momento, da Constituição, a questão que se coloca é a de saber se vale a pena, se e relevante, se é justificado introduzir qualquer alteração nesse panorama. O que é que, na circunstância portuguesa, impele a que se altere neste ponto o juízo fundador do regime? Aliás, este ponto apenas condensa e dá forma actualizada à matriz dcmocrático-constitucional republicana.

É essa a questão que, pensamos, deve ser apurada. Pela nossa parte empenhar-nos-emos nesse esforço. No entanto, gostaria de dizer que temos dúvidas profundas de que isto possa ser apurado, discutido e concluído, com felicidade, nesta revisão constitucional. Como sabem, são aplicáveis à apresentação de propostas certas regras, certos limites. Não tendo esta constado na grelha inicial de partida, nós não podemos, nos lermos do artigo 2.° do nosso Regimento publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 1-RC, de 3 de Março de 1988, apreciar senão propostas e textos se substituição constantes dos projectos de revisão apresentados. Esta ideia também aflora no disposto no n.° 1 do artigo 9.° Assim, a questão do enquadramento, face a estes limites ou regras da proposta apresentada, pode decidir-se no sentido da sua viabilidade? Este debate tem assento? Isto é, há que analisar a questão prévia da entrada no debate, independentemente da paixão, da relevância, da utilidade do mesmo. Podemos entrar nesse debate ou prossegui-lo sem ter em conta qual é exactamente o quadro aplicável? É que isto é decisivo para a utilidade da reflexão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, este debate, ao versar sobre esta temática, não pode ignorar que há um certo percurso histórico do tratamento desta matéria, designadamente em sede da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Este emitiu recentemente um acórdão que versa sobre esta temática e que declarou a inconstitucional idade quer do decreto-lei quer, por arrastamento, de normas de uma portaria, que vertiam no ordenamento interno dispositivos da Concordata celebrada entre o Estado