992 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
o que é a posse tout court mas, desculpar-me-á o Sr. Deputado Lino de Carvalho, não deu nenhum contributo para o meu esclarecimento sobre o que seja a posse útil. No entanto, podia ser que o Sr. Deputado José Magalhães desse. E o que veio fazer o Sr. Deputado José Magalhães, normalmente tão sábio, tão generoso a explicar e a fundamentar as coisas? Eu - lembrou - que passei por todos os governos provisórios menos o quinto, que fiz a reforma do Código Civil e tantas leis onde estes problemas foram discutidos, para quê esta preocupação retórica e preocupante, para que alimento esta preocupação preocupante? Diz o Sr. Deputado José Magalhães: "Ofereço o mérito não dos autos mas dos factos." Oferecerá. Mas se pensa que sei o que é a posse útil, e finjo que não, engana-se. A minha ignorância é crassa, responsável, lamentável e inexplicável: um jurista tão sofrível como porventura serei, e sem saber o que é a posse útil! A verdade é que não posso dizer que sei aquilo que não sei. Porque repare: eu não estive na Constituinte, andava a fazer a descolonização. E nem no Código Civil, nem em leis pelas quais eu fui responsável, se aflorou a ideia de posse útil. O que é que distingue a posse útil da posse tout court, o que é que a torna útil, porventura em contraposição à inutilidade da outra posse? Não sei se a outra é inútil ou se tem alguma utilidade ou qual seja a específica utilidade que distingue uma posse útil de outra ainda mais útil. E digo-vos mais: certa vez, o Dr. Mário Soares não pôde ir cumprimentar o Presidente da Jugoslávia quando este cá esteve, tendo eu tido de me levantar às 7 da manhã para o ir cumprimentar. E estive a falar com o Presidente da Jugoslávia hora e meia porque a certa altura da conversa vieram à baila os conceitos de posse útil e de propriedade social. Perguntei-lhe quem era o titular da propriedade social e ele respondeu-me: "Pois é... Os juristas discutem isso." E eu disse-lhe: "Nós temos jogado com esses conceitos, em parte bebidos na vossa doutrina mas eu, sinceramente - e disse-o com toda a franqueza e modéstia com que o disse ao Sr. Deputado José Magalhães -, não sei o que seja a posse útil." Ou o Presidente da Jugoslávia não me soube explicar ou então fui inábil ao ponto de não entender a explicação. Mas percebi que ele também não entendia muito bem o que fossem a posse útil e a propriedade social!...
E sinto a necessidade de saber tão bem o que seja a posse útil como sei o que é a posse tout court, não útil, ou inútil, não sei bem. Como sei o que é a propriedade e, enquanto assim não for, continuarei a afirmar que ignoro o significado desse conceito. E da explicação do Sr. Deputado José Magalhães, que oferece o merecimento dos factos, como poderei extrair uma lição da doutrina ou uma conclusão doutrinária? O que eu ponho em causa é a distinção doutrinal entre a posse útil e a posse tout court, não útil, ou também útil, como disse há pouco. Será a posse das UCPs? Será a posse das cooperativas? Mas o que é que distingue essa posse da posse normal, salvo quanto ao titular que, como é óbvio, é diferente, e quanto ao facto de os objectivos com que o titular possui serem diferentes? A natureza jurídica dessa posse é juridicamente diferente da posse normal? Ainda ninguém me elucidou sobre esta questão.
Parece que existe jurisprudência. Pois existe: existem esforços valorosos para tentar explicar alguns conceitos da Constituição que vieram inovar relativamente ao nosso direito tradicional. Eu é que, já sem emenda, ainda me movimento nos quadros do direito romano, sou demasiado velho, o que eu hei-de fazer? Certo é que continuo sem entender o que é a posse útil e penso que', quando dizemos "entrega a título de propriedade ou de posse", enriquecemos o texto constitucional na medida em que "posse", sem qualificativo, é pelo menos uma posse que abrange todas as formas de posse, a normal e a útil. E eu compreendo por que é que o PCP se opõe à entrega em propriedade, embora o Sr. Deputado José Magalhães não me tenha explicado. Mas não vale a pena discutirmos isso. Porém, consideramos que enriquecemos o texto constitucional indo até ao extremo liame do explorador à coisa explorada, valor que foi referido pelo Sr. Deputado José Magalhães, porque, ao que parece, nas nossas propostas comprometíamos essa ligação directa. No entanto, haverá maior ligação do que aquela que existe entre o proprietário e a propriedade? Certamente não há. Poderá não ser recomendável de outros ângulos e de outros interesses, mas não há dúvida de que o maior liame é o do proprietário à sua propriedade, e ninguém me convence do contrário.
Disse que nos cabe o ónus da prova da inutilidade do conceito. Para mim, o ónus da prova é fácil, pois, desde que eu desconheço o que seja a posse útil, o conceito é para mim inútil. Se me explicarem que temos de manter na Constituição este conceito, pois caso contrário acontece uma certa desgraça, muito bem. Todavia, qual seja essa desgraça, ninguém me disse ainda. E penso que, se estabelecermos aqui "posse" ou "propriedade", fá-lo-emos em termos que todos entendam.
Passe à critica dos conceitos novos propostos, diz o Sr. Deputado José Magalhães. Mas, Sr. Deputado, não posso criticar aquilo que não entendo e a maior crítica que lhe posso fazer é a de que ao fim de todos estes anos continuo opaco ao ponto de ainda não ter entendido o que é a posse útil. E ainda agora não tive o prazer de ser esclarecido.
Por outro lado, como é que aparece na Constituição a eliminação dos latifúndios? Como instrumento em segunda linha da realização de um objectivo da política agrícola. No artigo 96.° refere-se que a política agrícola tem como objectivo promover a melhoria da situação dos agricultores através da transferência progressiva da posse útil. Depois, no artigo seguinte estabelece-se que a transferência de posse útil da terra será obtida através da expropriação dos latifúndios e que as propriedades expropriadas serão entregues para exploração, etc.. Consequentemente, temos que a eliminação dos latifúndios é um elemento de segunda linha para realizar um objectivo e não um princípio de política económica. E, inclusivamente, nas próprias incumbências prioritárias do Estado, fala-se apenas em realizar a reforma agrária.
Pergunta o Sr. Deputado José Magalhães se não se perderia o contacto directo como bem. Pensa que, sendo-se proprietário, se perde o contacto directo com o bem, ou que, sendo-se possuidor tout court, se tem menor contacto com o bem do que o que tem o possuidor em posse útil? Só que - repito - eu não entendo o que seja posse útil. Diz-me também que sabe perfeitamente o que é a posse útil. Com essa questão embaraça-me, na medida em que me coloca na situa-