66 II SÉRIE -NÚMERO 4-RC
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não posso deixar de dizer que, em meu entender, se olharmos na perspectiva das garantias institucionais e das relações entre o ordenamento jurídico português e o comunitário, preteriria, claramente, a redacção proposta pelo Partido Social-Democrata, porque evita algumas dificuldades interpretativas que se podem colocar no futuro, dando maleabilidade suficiente, através da legislação ordinária, que estrutura o estatuto do Banco de Portugal e que hoje está consubstanciado na sua Lei Orgânica, para lhe dar as atribuições que, em matéria de política monetária, deve ter. E, por outro lado, a expressão "colaborar na definição e execução das políticas monetária e financeira" adequasse perfeitamente à estrutura do SEBC e a todo o dispositivo normativo que, sob a epígrafe "Política monetária", vem consignado no Tratado de Maastricht.
Todavia, se, após ponderação, viermos a considerar que tem um valor simbólico muito importante o não desconstitucionalizar o problema da emissão de moeda, ou seja, o de dizer quem emite moeda metálica, não vejo que seja um obstáculo inultrapassável, em termos de eficácia, no estádio final, do Tratado de Maastricht, compatibilizar os dois ordenamentos jurídicos. Tenho dúvidas de que se lhe atribua essa importância, esse peso, como lhe está a ser atribuído, mas suponho que não se justificará terçar longamente lanças, pois é uma questão que teremos de equacionar no conspecto global da revisão constitucional. Só que gostaria, realmente, de chamar a atenção de VV. Exas. para o facto de não se dever pensar que a supressão de uma garantia institucional, ao nível da Constituição, significa uma alteração da lei ordinária.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Muito brevemente, gostaria de chamar a atenção para dois aspectos.
O primeiro não tem sido aqui discutido e é, porventura, o decisivo, o mais relevante, aquele para o qual, evidentemente, a solução constitucional não reside na alteração deste artigo.
Com efeito, por força da entrada em vigor e da aplicação plena da última das fases de desenvolvimento do corpo de normas respeitante à união económica e monetária, o que acontece ao estatuto do Banco de Portugal é uma transmutação radical. Passa a ter uma outra forma, um outro modelo de funcionamento situado, praticamente, nos antípodas daquele que tem sido característico, pelo menos, na sua história retratável, desde que a Constituição está em vigor.
Vamos mesmo suprimir a norma introduzida em 1989 que referia que o Banco de Portugal tudo faria de acordo com a Lei do Orçamento, os objectivos definidos nos planos e as directivas do Governo. A supressão dessa última parte do normativo traduz, provavelmente, a percepção e, em certo sentido, a antecipação dessa mudança radical do estatuto.
A Constituição não vai ter, presumo eu, e provavelmente nem seria excessivamente saudável que tivesse, uma decantação ou uma expressão normativa muito precisa da norma que é causadora dessa grande mudança, que é o artigo 107.° do Tratado da União Europeia, na sua actual redacção, que prevê que "no exercício dos poderes e no cumprimento das atribuições e deveres, que lhes são conferidos pelo presente Tratado e pelo Estatuto do SEBC, o BCE, os bancos centrais nacionais ou qualquer membro dos respectivos órgãos de decisão não podem solicitar ou receber instruções das instituições ou organismos comunitários, dos governos dos Estados membros ou de qualquer outra entidade" e, por outro lado, "a instituições e organismos comunitários, bem como os Governos dos Estados membros, comprometem-se a respeitar este princípio e a não procura influenciar os membros dos órgãos de decisão do BCE ou dos bancos centrais nacionais no exercício das suas funções." Esta é uma norma que altera directamente, muito mais do que o estatuto do Banco de Portugal, como banco centrai, as próprias competências do Governo Português, dos órgãos de soberania portugueses no que diz respeito ao relacionamento com o Banco de Portugal, submetendo-os a uma espécie de injunção de não ingerência, a um dever de abstenção de actividades de "influenciação".
Trata-se de uma coisa inteiramente nova e que significa, precisamente, uma ruptura com o princípio básico que, provavelmente, presidiu e ainda preside ao texto constitucional e era a alma, a base, o princípio fundador nesta matéria ou até a razão da existência desta redacção constitucional tal qual está e não de uma outra que proclamasse e definisse os contornos da independência do Banco de Portugal.
Como se sabe, foi proposta uma norma desse tipo em vários momentos da revisão constitucional em Portugal e nunca foi acolhida, sendo agora consagrada implicitamente ou por outra via, mas num contexto em que o Banco de Portugal assume um estatuto de membro de um sistema europeu de bancos centrais, ou seja, um estatuto em que o seu grau de autonomia é, ele próprio, condicionado pela inserção no sistema.
Sr. Presidente, por outro lado, gostaria de assinalar, e nisto não há nenhuma ironia, que esta inserção acarreta também uma subordinação que flui, por exemplo, do disposto no artigo 108.°-A. E um artigo extremamente interessante, cuja exegese estamos dispensados de fazer nesta sede, mas será certamente feita noutra.
Sublinharia ainda, entre outras coisas, que a entrada em vigor dessa norma, com todas as suas consequências, implica a possibilidade não só de formulação de decisões, recomendações e pareceres, mas também de verdadeiros e próprios regulamentos de carácter geral, obrigatórios para todos os elementos e directamente aplicáveis em todos os Estados membros, o que implicará, evidentemente, que o funcionamento do Banco de Portugal, disciplinado pelo artigo 105.° do texto constitucional, seja profundamente condicionado pela aplicação desta panóplia de novos meios de direcção e orientação de carácter normativo ou paranormativo, que não encontram acolhimento neste artigo.
Assim, Sr. Presidente e Srs. Deputados, o essencial do futuro estatuto do Banco de Portugal decorre da entrada em vigor de outras normas do Tratado de Maastricht, por força do disposto no artigo 8.° da Constituição da República Portuguesa e através dos mecanismos nele previstos, designadamente dos que permitem a entrada em vigor e a aplicação de instrumentos inteiramente novos, como estes que, sob formas que parecem familiares, são completamente novos. Estamos a falar de regulamentos que não têm nada a ver com as formas regulamentares que conhecemos e de decisões e recomendações que não têm nada a ver com o sentido que nós, no direito administrativo português, por exemplo, damos a estes conceitos. Trata-se de figuras totalmente diferentes. Ninguém colocou essa questão, nenhum partido de nenhum quadrante colocou a questão de o artigo 105.° conter qualquer alusão a esta problemática. Gostava, ainda assim, de registar este aspecto, porque isso clarifica pontos de vista.