10 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
mentos, entregado quaesquer sommas illegaes ao Rei, a pessoa da Familia Real.
Nem por sombras suspeitei d'aquillo que já hoje é conhecido.
Faço estas affirmações, com toda a energia, sem intenção de aggravar ninguem, sem o proposito de carregar as culpas de outros.
É precisa toda a luz, toda a justiça: mas são crueldade e paixão os relampagos de odio hysterismo de perseguição a nevrose de castigar.
Os adeantamentos á Casa Real são actos illegaes: caiam responsabilidades legitimas, sejam de que ordem forem, sobre os que nelles intervieram.
Não podem comparar-se com outros adeantamentos, porque estes assumiam o aspecto gravissimo de serem feitos ao Chefe do Estado, ao supremo depositario da lei, a quem dá ou tira o poder.
Em verdade, porem, não foram elles um incidente d'essa funesta politica chamada do engrandecimento do poder real, que criou na sociedade portuguesa o desrespeito á lei e um modo de ser, da vida politica, muito caracteristico?
Na Inglaterra, ha a velha frase «a lei vale mais do que o Rei, porque a lei é que faz o Rei e não é o Rei que faz a lei».
Aqui, durante um larguissimo periodo, entendeu-se o contrario. Convergiam os olhos para o Paço: a lei era a vontade do Presidente do Conselho, que, por seu turno, era ou se julgava ser o reflexo da do Rei.
Invocava-se - lembram-se todos, não é assim? - o nome do Rei para tudo. Introduziram-se na administração abusos, praxes, que desnervaram toda a fiscalização seria.
O Parlamento collaborava nessa obra, até porque o menor sinal de independencia ou de protesto correspondia á sua dissolução.
O desprezo da lei tornou-se a atmosphera respiravel. Por mim recordo-me de actos que pratiquei, condescendencias que tive, acções de clientela, praxes que encontrei, e reconheço que, não sendo um espirito transigente nem uma consciencia facil, fui algumas vezes, até sem d'isso dar tento; na corrente doentia d'esse tempo.
Os que vivem á beira dos paúes, por mais resistente que seja o arcabouço, tambem soffrem de febres!
A politica do engrandecimento do poder real tambem consigna o regime presidencial que já aqui tão brilhantemente descrevera o Sr. João Arroyo, formidavel orador que a Camara admirara neste debate.
A vida politica superior decorria entre o Rei e o Presidente do Conselho.
Eram estes os unicos que estavam em relações constantes e directas.
Creio firmemente que houve muitissimos Ministros que jamais trocaram uma palavra com o Chefe do Estado sobre assuntos das suas secretarias! E - a verdade sempre! - talvez muitas vezes porque d'elle se não aproximavam, com receio de ferir susceptibilidades do chefe do Governo, que, por mercê do regime presidencial, avocara a si toda a influencia real e criara uma situação privilegiada, quasi omnipotente. Porque era até que se conservara tão profundo sygilo nesta questão dos adeantamentos? Porque os Ministros, sabe Deus ás vezes com que repugnancia e através de quantos desgostos, fizeram os adeantamentos que o Presidente do Conselho, sendo o unico que falava com o Chefe do Estado, lhes impunha. Porque este mysterio, esta reserva, era até, junto da Coroa, uma das forças, um dos elementos do poder, do chefe do Governo e chefe de partido.
Poder-se-hia dizer que a suprema austeridade, a altiva e austera hombridade, deviam mandar romper com semelhantes imposições. É verdade! Mas havia a malaria que contaminava os mais fortes! Infiltrara-se nos animos a doença do desrespeito á lei. E, diga-se toda a verdade, os homens publicos que resistissem estavam condemnados a morrer politicamente, sem que os apoiasse sequer o seu partido e sem que a propria nação, desconfiada e tambem doente, lhes desse a menor força. Não se sabe o que aconteceu com alguns homens publicos, dos mais eminentes do país, quando romperam com o chefe politico dos seus partidos? Nem Paço nem povo os acompanharam.
O Paço repelliu-os: o povo não os alentou.
Em França, quando foi dos dias tormentosos do Terror, um dos mais valorosos organizadores da revolução, o poderoso escritor e implacavel orador da Constituinte, l'abbé Sieyés, ligou o seu voto, sempre silenciosamente, a alguns actos dos maios violentos d'aquella epoca tão grande nas suas obras de redempção de um povo, como grande até em desvairamentos e paixões.
Um dia perguntaram a Sieyés: - «que fez durante o Terror?» - «Vivi» - respondeu. Viveu, porque se ca ou, transigiu, obedeceu. Não é heroico - mas é humano! A vida do poder, da luta, da dominação, é tão precisa nos que mourejam a faina de homem publico, como a vida physica. Quem resistisse áquella funesta theoria do engrandecimento do poder real com a omnipotencia absoluta do Paço e na Presidencia do Conselho, morria para o Governo, para a consideração do seu partido, e não encontrava na opinião publica o amparo moral que influe alento para a resistencia e para o combate.
Não exponho este quadro, de uma flagrante realidade, para attenuar a responsabilidade de quem quer que seja. Repito: quero toda a luz, quero a effectivação das legitimas responsabilidades. Mas a justiça é dizer a verdade inteira. Digo-a. É porque a digo, e porque quero toda a claridade é que me insurjo contra o artigo 5.° que, a juizo meu, se originou no proposito de continuar as trevas do passado, que interpretou mal a vontade do Soberano traduzida na sua carta de 5 de abril e que prosegue as escuridões d'esta dolorosa questão dos adantamentos.
A simples leitura d'esse artigo 5.°, tal como o Governo, com assenso dos partidos, o apresentou, mostra como a vida velha, com as suas falsidades, requer prorogar e impor-se. Que determina elle? A criação de uma commissão especial, nomeada pelo Parlamento, composta de funccionarios - um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, um vogal do Supremo Tribunal Administrativo, um outro mais do Tribunal de Contas, e ainda outro da Junta do Credito Publico, todos presididos pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça - encarregados da liquidação de contas entre o Estado e a Fazenda da Casa Real. Esta proposta é, como o provou o Sr. Medeiros no seu bello discurso, inconstitucional. Offendia, como mostrou, o artigo 10.°, § 1.°, e o artigo 36.°, § unico, da Carta Constitucional. Teria, alem d'isso, a inconstitucionalidade de dar áquella commissão a faculdade de fazer leis, pois só por uma lei se podia fazer a liquidação dos adeantamentos. Se assim não fosse, bem estava o decreto ditatorial de 30 de agosto! A Camara não pode delegar as suas attribuições legislativas. Mas o que a mim ainda importa accentuar mais do que a inconstitucionalidade é que, para o funccionamento d'essa commissão, não se determinava o processo a seguir, nem se fixava prazo para a liquidação. Quer dizer: estava-se em face de um caso semelhante ao da portaria de 22 de novembro de 1879, referente aos direitos em divida, nas alfandegas, da Casa Real, o seu encontro com creditos da Casa Real sobre o Thesouro Publico. Trinta e nove annos são decorridos e ainda não veio a publico, ainda não o conhece o Parlamento, ainda o não conhece o país, ao resultado dos trabalhos d'essa commissão! O mesmo aconteceria agora; foi uma tentativa da vida velha com as suas sombras e habilidades!
A opposição da Camara dos Deputados, as reclamações da commissão parlamentar de inquerito, fizeram que