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720 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70

acautelar capazmente todos os legítimos interesses da sociedade e de terceiros contra os excessos e abusos da liberdade religiosa.
Há, com efeito, vários grupos confessionais aos quais é imputada a defesa de princípios ou a imposição de normas de conduta, que, estando em aberto conflito com regras fundamentais, quer do direito público, quer do direito privado, de muitos dos Estados modernos, excedem indubitavelmente o âmbito restrito da tutela dos bons costumes.
Os Filhos Eleitos de Kempten, acreditando na proximidade do fim do mundo, recusar-se-iam a pagar impostos ao Estado; as Testemunhas de Jeová, a pretexto de lhes repugnar todas as formas de violência contra o seu semelhante, exprimiriam a sua objecção de consciência, se não contra toda a prestação de serviço nas forças armadas, pelo menos contra o cumprimento de certos deveres militares; as Testemunhas de Cristo entenderiam que, no caso de doença de algum dos seus membros, se deveria recorrer à oração, apelando para a intervenção sobrenatural, e não aceitar os cuidados profanos da medicina 137.
É precisamente a intenção de afirmar a supremacia das normas violadas com estas directivas de ordem prática, ou com afirmações de princípios de natureza semelhante, que explica o facto de muitas constituições fixarem como limite geral da liberdade religiosa a ordem pública.
A ordem pública é constituída pela súmula dos preceitos fundamentais que integram, quer no direito público, quer no direito privado, a organização política e social da colectividade.
Trata-se, como ó bem de ver, de um conceito muito vago e bastante impreciso, por nem sempre ser fácil distinguir, com a necessária segurança, dentro da legislação de cada Estado, entre as regras que são fundamentais no contexto da ordem jurídica e aquelas que o não são (normas técnicas, normas de interesse e ordem particular, etc.).
Talvez por isso, e também pelos abusos que as autoridades policiais cometeram à sombra, da invocação da ordem pública, com vista a impedirem os mais variados actos dos grupos confessionais não católicos 138, é que a Constituição Italiana omitiu a referência à ordem pública, ao definir a liberdade dos cidadãos em matéria de religião (cf., porém, o artigo 8.°).
É, no entanto, para reprimir abusos do género dos praticados pelas autoridades policiais em Itália que existem tribunais nos vários Estados, e é para que as autoridades se coíbam da sua prática que há fiscalização contenciosa dos actos da administração.
De todo o modo, duas ideias importa reter por enquanto: por um lado, o limite imposto pelos bons costumes è necessário, mas manifestamente insuficiente 139; por outro lado, o limite baseado na ordem pública è de tal modo vago e impreciso que pode dar lugar a muitas dúvidas na sua aplicação prática.

CAPITULO II

A Nação Portuguesa e a Igreja Católica

36. O princípio da liberdade religiosa e a posição especial do catolicismo em Portugal. - O princípio da liberdade religiosa, nos termos abertos com que é aceite pela consciência social do mundo contemporâneo e foi sancionado pela doutrina conciliar, não pode, como é evidente, destruir os laços especiais que ligam algumas religiões a determinados povos.
Trata-se, nos numerosos Estados em que assim sucede, de um elemento que vem justapor-se, no que a ideia tem realmente de novo, ao regime jurídico até agora vigente, mas que não deve revogá-lo, nem precisa de o fazer.
Há apenas uma porta cuja abertura- se amplia, sem para tal haver necessidade de demolir o vasto edifício em que ela se integra.
Todos conhecem, na verdade, a influência profunda que os princípios morais do cristianismo, sublimando a larga contribuição proveniente da filosofia grega e da civilização romana, tiveram na formação da cultura europeia, (c), através da expansão do antigo continente, na modelação das sociedades norte e sul-americanas. Esse fermento espiritual cristão entranhou-se na alma dos povos e consolidou-se, com o andar dos séculos, na generalidade das nações integradas no mundo ocidental.
No caso particular de Portugal, sabe-se que o Condado Portucalense ampliou gradualmente o seu território e que o novo reino construiu a sua independência, sob o signo da reconquista cristã. Quando, três séculos volvidos, no dealbar da Idade Moderna, o País se lançou apaixonadamente na empresa das conquistas e descobertas, foi poderosa, sob vários aspectos, a contribuição da Fé e da Igreja para o êxito do empreendimento.
A fixação dos Portugueses nas costas de África, no Brasil, nas terras do Indico e nos confins do Oriente processou-se sempre, com todas as fraquezas dos homens e por entre os costumes dos tempos, em termos de por todos ou quase todos ser considerada uma luz do Ocidente e, mais concretamente, uma presença cristã. Deve-se aos missionários católicos, que durante séculos têm levado a doutrina dos Evangelhos às mais remotas e inóspitas paragens do ultramar, não só uma contribuição notável para a obra de promoção moral e social das populações autóctones, mas também uma ajuda preciosa para a formação da consciência nacional.
Outras comunidades religiosas existem, é certo, dentro das províncias ultramarinas e na própria metrópole, fazendo parte integrante da Nação Portuguesa, como as comunidades muçulmanas há séculos instaladas na Guiné e em Moçambique, por exemplo, e a comunidade judaica, que vive no Portugal Metropolitano. Mas sobre as missões católicas continuará certamente a recair, durante muito tempo, o peso maior da responsabilidade de levar os autênticos benefícios da civilização até àqueles milhões de autóctones dispersos pelo interior, cujo espírito se não abriu ainda aos problemas transcendentes da vida e do universo, que são objecto da religião.
Tal como no ultramar, também na metrópole ó intensa a repercussão do catolicismo, quer na vida individual, quer na acção colectiva dos Portugueses.
O catolicismo foi durante largos séculos, até à Lei da Separação de 1911, a religião oficial do País, a ponto de o poder temporal ido Estado se estender a largas zonas

137 Pio Fedele, ob. cit., pp. 54 e seguintes. A propósito da prestação do serviço militar, cf. a sentença do Tribunal Militar Territorial de Turim, comentada por Capograssi, "Obbedienza e coscienza", no Foro Ital., 1950, II, cols. 47 e segs.
138 A fórmula do artigo 1.° da Lei de 24 de Junho de 1929 (sobre os cultos não católicos) serviu, no entender de vários autores, para impedir a liberdade de culto de algumas confissões protestantes.
139 Ver as considerações do próprio Jemolo ("In tema di libertà", no Archivio giuridico, 140, 1954, pp. 3 e segs.), um dos grandes campeões da ideia da liberdade religiosa em Itália, e de Catalano, ob. cit., pp. 71 e segs.
140 Veja-se, a propósito, Corral Salvador, Valor comparado de la legislación española de libertou religiosa, na Rev. esp. der, can., 1968, pp. 829 e segs.