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28 DE ABRIL DE 1971 723

Sabe-se como as lutas e as desordens provocadas em vários Estados da Europa pelo movimento religioso e político da Reforma, conjugadas com o carácter absolutista das monarquias de então, criaram no século XVII e começos do século XVIII um ambiente particularmente propício à fermentação do espírito das igrejas nacionais e à deslocação de boa parte dos direitos do papado para a esfera dos poderes políticos do soberano.
Irromperam assim, no seio das próprias nações católicas, várias correntes de pensamento (como o galicanismo 144, o josefismo e o febronianismo), igualmente apostadas em alargar o âmbito da autoridade temporal do monarca.
Dessas correntes salientou-se, pela sua duração e influência prática, o chamado jurisdicionalismo 145, em cujas premissas se fundaram, entre outros, os seguintes direitos majestáticos: o jus rejormandi, o jus protectionis, o jus supremae inspectionis, o jus cavendi, e o jus appelationis como faculdade de recorrer para os tribunais seculares contra os abusos do poder eclesiástico 146.
Toda essa tendência regalista (assim se chamou entre nós ao movimento político e cultural a que na França se deu, de preferência, o nome de galicanismo) se reflecte, como ó sabido, na vigorosa administração pombalina 147. E dela se encontram ainda nítidos vestígios, não só na Constituição de 1822, de efémera vigência no conturbado advento do liberalismo, mas ainda na Carta Constitucional de 1826, que vigorou como estatuto político do País praticamente (com breves períodos de interregno) até 1910.
Logo no artigo 6.° deste último diploma se afirma que p religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Reino. No artigo 72.° reconhece-se o carácter sagrado da pessoa do rei, e entre os poderes expressamente conferidos ao monarca figuram o de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos (artigo 75.°, § 2.°) e o de conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, letras apostólicas e outras constituições eclesiásticas (§ 14.°). A responsabilidade do soberano pelos assuntos da fé reflecte-se ainda na própria fórmula do juramento exigido tanto do rei como do herdeiro presuntivo do trono, a qual principia exactamente pela promessa de manter a religião católica apostólica romana (artigos 76.° e 79.°).
O artigo 4.° do Decreto de 30 de Julho de 1832 chamou ao Governo a faculdade de apresentar os párocos para as igrejas, e os eclesiásticos para os vários benefícios, vindo o Decreto de 2 de Janeiro de 1862 a prescrever que o provimento destes cargos fosse feito por concurso aberto pelo competente Ministério. "Era, pois, comenta o Professor Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., I, n.° 169), a redução da Igreja Católica a um serviço público do Estado, a que não faltava o tratamento dos seus ministros como se fossem funcionários."

40. A separação assente sobre o poder subalterno da Igreja (laicismo). - A concepção da religião oficial do Estado, com todo o relevo nela atribuído ao factor religioso na vida da comunidade nacional, não resistiu ao embate demolidor do enciclopedismo. Uma a uma, a revolução de 89 destruiu as peças fundamentais sobre as quais assentava o antigo sistema. Mesmo quando o ímpeto revolucionário do liberalismo afrouxou de intensidade, não renasceu o prestígio da religião. Pelo contrário, tudo se conjugava no espírito da época para minimizar o papel da fé e das congregações confessionais na vida social dos povos. A religião passou a ser declaramente considerada como matéria do foro íntimo de cada cidadão, a que o Estado liberal era em princípio indiferente.
A doutrina da separação surgiu assim naturalmente, comenta Petroncelli 148, não para reafirmar, como sucede na doutrina católica da coordenação dos poderes, a existência de duas sociedades com distinta competência sobre os mesmos indivíduos, gozando as respectivas autoridades de plena independência na esfera da sua jurisdição, mas antes para significar que o Estado se desinteressa do credo religioso dos seus súbditos, como matéria do foro estritamente particular de cada um, e que a sua intervenção na matéria visa apenas a prevenir e a reprimir os abusos da Igreja, confinando a acção desta aos limites preestabelecidos pelas autoridades civis.
O aspecto mais curioso de toda esta evolução está, porém, como nota o mesmo autor, no facto paradoxal de, não obstante o espírito liberal com que é perspectivada a actividade dos cidadãos individualmente considerados, o Estado não abrir mão dos instrumentos com que pretendia continuar a controlar e fiscalizar todas as manifestações organizadas da vida religiosa.
E esta observação crítica assenta como uma luva sobre os amplos poderes de intervenção que a Lei de 20 de Abril de 1911 colocou nas mãos do Estado.
Recorde-se que, ao caracterizar doutrinàriamente o jurísdicionalismo, Marnoco e Sousa 149 escreve, em certa altura, o seguinte:

O Estado vai ainda mais longe, e, quando o interesse social o exige, suprime as pessoas jurídicas eclesiásticas, converte os seus bens noutra forma de riqueza ou substitui-lhes uma renda que inscreve nos seus orçamentos. Escolhe entre as corporações monásticas as que considera úteis à sociedade e suprime as outras, apresenta ao pontífice os indivíduos que julga dignos de serem elevados aos supremos cargos da Igreja, fiscaliza a educação do clero, mediante a inspecção dos seminários, provê directamente ao ensino da teologia, mantendo nas Universidades a faculdade respectiva.
Finalmente, constitui-se juiz dos actos das autoridades eclesiásticas, permitindo às partes lesadas ou ao Ministério Público recorrer para os tribunais seculares dos abusos do poder espiritual, não somente nas relações civis das decisões eclesiásticas, como quando se trata da posse de um benefício, mas também quanto aos actos puramente espirituais, como a administração dos sacramentos.

Ora, cotejando este quadro sintético do sistema jurisdicionalista, magistralmente traçado por Marnoco, com os passos mais significativos da lei portuguesa da separação, quanto à sorte dos bens da Igreja, a inter-

144 Designado nascida da. conhecida Declaratio cleri gallicani, de 1682, na qual os bispos franceses defendem os direitos do monarca contra os poderes da Santa Sé: M. Petroncelli, ob. cit., n.º 17.
145 "O jurisdicionalismo, escreve Marnoco e Sousa (Direito Eclesiástico Português, 1910, n.° 144), não admite a subordinação absoluta da Igreja ao Estado, como pretende a autocracia, mas a subordinação necessária para a fiscalização da actividade daquela instituição."
O autor concretiza, a seguir, os principais aspectos desta ideia.
146 Sobre o conteúdo de cada uma destas prerrogativas veja-se Petroncelli, ob. cit., n.° 18.
147 Cf., a propósito, Luís Gonzaga de Azevedo, "O regalismo e a sua evolução em Portugal até ao tempo do Padre Francisco Suarezs, na Brotéría, XXXIV, pp. 292 e 481, e Fortunato de Almeida, ob. cit. e vol. cit., pp. 18 e segs.
148 Ob. cit., n.º 20.
149 Ob. cit., p. 456.