728 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70
bém que considerar a liberdade religiosa dos filhos, para se saber como há-de ela ser conjugada com a organização hierárquica da instituição natural que é a família.
Ora, há precisamente neste ponto nevrálgico da matéria duas novidades no projecto governamental, que necessitam de um pouco de reflexão.
Por um lado, limita-se expressamente aos menores de 16 anos o poder de os pais decidirem sobre a sua educação religiosa [base II, alínea g)], completando-se a nova restrição com a expressa atribuição aos maiores de 16 anos do direito de escolherem a sua religião e de livremente se inscreverem, nos cursos de religião e moral (base V).
Por outro lado, acrescenta-se, que o ensino da religião e moral nas escolas públicas só será ministrado aos menores de 16 anos, quando os pais, ou quem suas vezes fizer, expressamente o desejarem.
Relativamente à primeira questão, julga a Câmara oportuno lembrar que a generalidade das legislações não fixa nenhum limite de idade para a aquisição antecipada da maioridade em matéria de educação (religiosa ou não religiosa) 161. Ao mesmo tempo, os autores não deixam de reconhecer que, ma prática, o poder de os pais intervirem coercivamente na vida religiosa dos filhos menores é, a partir de muito tenra idade, bastante mais teórica do que real 162. À medida que vão adquirindo personalidade ou se vão deixando arrastar pela força das próprias inclinações ou pela imitação do exemplo alheio, os menores vão espontaneamente "praticando ou deixando de praticar em matéria de religião. Dificilmente o pai conseguirá que o filho adolescente frequente a igreja ou receba os sacramentos, quando ele o não queira fazer, como dificilmente o impedirá de praticar esses actos, quando seja essa a vontade do menor. É possível que na motivação do filho influa muitas vezes o temor reverencial perante os familiares ou a afirmação da rebeldia própria da adolescência. Mas motivações igualmente impuras e de vária ordem interferem continuamente na vida religiosa dos adultos, e nem por isso deixa de admitir-se a sua liberdade na matéria.
Apesar de tudo isto, entende a generalidade dos autores que nenhuma necessidade existe de estabelecer um limite especial de idade 163 para a aquisição da maioridade religiosa e que não há vantagem nenhuma em o fazer.
Se os deveres dos pais compreendidos no poder paternal só findam com a maioridade dos filhos, começa por não haver grande coerência no estabelecimento legal de um limite (rígido) diferente para a cessação dos poderes paternos em matéria de educação 164.
Além disso, o simples bom senso dos pais, as reacções naturais dos filhos e a própria doutrina das confissões religiosas (apelando para a vontade das crianças e condenando a coacção dos familiares) se encarregam de dar ao exercício do poder paternal, nesta matéria entre todas delicada, a flexibilidade que melhor se adapta às circunstâncias de cada caso e à capacidade real de cada menor.
A maior intromissão da lei, com soluções do tipo exarado no projecto, seria bastante mais nociva do que proveitosa 165.
Por último, há-de reconhecer-se que a tentação criada pela faculdade que o n.º 1 da base V conferiria apertis verbis ao maior de 16 anos encontra os seus destinatários numa fase de formação moral e crescimento fisiológico, que não será a mais propícia para opções dessa natureza em assuntos de tamanho melindre, e poderia agravar os conflitos inevitáveis entre pais e filhos no período difícil da adolescência destes.
Note-se, com efeito, que o direito de livre escolha da religião por parte dos maiores de 16 anos, enfàticamente proclamado no n.° 1 da base V do projecto e completado pela sua livre inscrição nos cursos de Religião e Moral, pouca ou nenhuma importância prática reveste para os rapazes ou raparigas que já frequentem cursos superiores (onde não há cursos de Religião e Moral) ou que já tenham abandonado os estudos. Ele interessará apenas, na realidade, aos alunos dos cursos secundários que, normalmente, frequentarão os seus dois últimos anos ou àqueles que, em regra pelo seu mau aproveitamento escolar, permaneçam no liceu para além dos 17 anos.
Ora, não se descortina nenhuma razão para abrir um regime excepcional com vista a estes núcleos de alunos. Talvez até se possa dizer que essa é, pela idade dos jovens ou pelo seu deficiente aproveitamento, a camada escolar onde a concessão da lei se tornaria mais perigosa, atendendo aos efeitos irremediáveis que a falta de educação religiosa e moral, na altura própria em que deve ser ministrada, arrasta muitas vezes consigo.
47. Quanto à segunda questão, houve quem desde logo observasse que a solução adoptada no projecto se não harmonizava com a doutrina assente sobre a matéria na Concordata.
161 Que na Câmara se saiba (cf. Corral Salvador, na Revista espanhola de derecho canónico, 1967, p. 649), só na Alemanha se adopta uma solução semelhante à do projecto português, embora o limite aí fixado (cf. Lei Fundamental, artigo 7.º, n.ºs 2 e 3; Constituição da Baviera, artigo 137.°, n.° 2; da Benânia-Palatinado, artigo 35, § 2; do Sarre, artigo 29, § 2) seja de 18, e não de 16 anos; além disso são obrigados os alunos que não queiram assistir às aulas de Religião a, frequentar uma cadeira de instrução sobre os princípios universalmente reconhecidos pela lei moral natural.
162 Jemolo, Premesse..., p. 194.
163 0 Código Civil procurou, no domínio da capacidade negociai e (noutros aspectos relevantes do regime da menoridade, dar expressão jurídica adequada ao fenómeno da aquisição gradual da maturidade intelectual e moral por parte dos jovens. Fê-lo, porém, através de um critério inteiramente diferente do utilizado, em matéria de liberdade religiosa, pelo projecto em exame.
Apelou, não para um limite rígido especialmente aplicável a certas categorias de actos, mas para a capacidade natural do menor e a importância económica dos actos praticados. "São excepcionalmente válidos", diz nesse sentido o artigo 127.° do Código, "além de outros previstos na lei:
1. ......... a)
b)Os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor, que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas ou disposições de bens de pequena importância.
c) ......... "
164 Não se diga que num caso análogo ao versado no projecto - ou seja, quanto à opção entre o casamento católico e o casamento civil - a lei [artigo 1601. °, alínea a), do Código Civil] não hesitou em fixar um limite especial de capacidade (16 e 14 anos, consoante se trate de rapazes ou raparigas).
Não há, com efeito, analogia entre as duas situações.
No caso do casamento do menor, são, em princípio, ouvidos os pais e, se estes deduzirem oposição justificada à sua celebração, o matrimónio não será celebrado (artigo 1612.°, n.° 2, do Código Civil).
Além disso, a capacidade matrimonial concedida aos menores de 21 anos e maiores de 16 ou 14 anos só aproveita ao número relativamente pequeno daqueles (sobretudo de rapazes) que, em concreto, se julgam em condições de assumir as responsabilidades pesadas da sociedade conjugal.
A capacidade prevista no projecto aproveitaria, em termos gerais, a todos aqueles que, pura e simplesmente, se quisessem libertar do fardo incómodo de ter mais uma disciplina no liceu ou de assistir às aulas de um professor de que não se gosta, ou que se deixassem determinar por motivos de igual frivolidade.
165 "Impor limites, mais ou menos arbitrários, à acção dos pais, neste campo delicadíssimo das suas relações com os filhos, que só na intimidade doméstica se podem equacionar convenientemente", escrevem os bispos na declaração de 13 de Novembro de 1970, "é, mesmo com a melhor das intenções, provocar danos muitas vezes irreparáveis."