726 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 70
Além de ser desnecessária, a expressão pode causar ainda certa estranheza, depois de o Governo afirmar, na parte final do preâmbulo do projecto, que "submete à apreciação da Assembleia apenas a disciplina do exercício da liberdade religiosa na metrópole".
O artigo 1.º da Lei Espanhola de 28 de Junho de 1967 adita ao reconhecimento solene do direito à liberdade religiosa a nota de que esta se funda na dignidade da pessoa humana.
Trata-se, como é sabido, de mera reprodução do ensinamento expresso na Declaração Conciliar sobre a matéria.
É, porém, uma afirmação de carácter doutrinário, manifestamente deslocada na disciplina jurídica do tema, visto o seu sentido transcendente exceder o plano normativo em que, ao regular a matéria, se situa a legislação civil.
Pelas razões expostas, o texto que a Câmara sugere para a redacção da base é o seguinte:
BASE I
O Estado reconhece e garante a liberdade religiosa das pessoas, singulares ou colectivas, e assegura às confissões religiosas a protecção jurídica adequada ao interesse moral e social da sua actividade.
BASE II
45. Conteúdo da liberdade religiosa. - A base II do projecto define o conteúdo da liberdade religiosa.
A primeira observação a registar é que, de acordo com as considerações anteriormente expostas, a enumeração de faculdades a que a lei proceda neste ponto nunca deve assumir natureza taxativa.
Por maior que seja o cuidado do legislador, há sempre aspectos que escapam à previsão da lei. E nenhum interesse decisivo é possível invocar no sentido de excluir da protecção legal todos os aspectos omissos.
Logo em relação ao primeiro ponto versado na base em exame, ocorre naturalmente perguntar o seguinte: tendo a pessoa o direito de professar ou não uma religião, ser-lhe-á lícito abandonar pura e simplesmente a que professou, mudar de religião, escusar-se à prática dos actos prescritos pela religião 157 que professa ou pratica os actos que ela condena 158?
Relativamente ao direito de divulgação, a que se refere a alínea d), por exemplo, quererá o texto proposto significar que só é lícita a divulgação das doutrinas de confissões religiosas existentes e já não a difusão das convicções pessoais de que trata a alínea precedente?
A segunda nota a consignar é que na delimitação aparentemente exaustiva do conteúdo da liberdade religiosa se agrupam, sem necessidade, sob o mesmo rótulo genérico dos direitos subjectivos, figuras jurídicas muito distintas.
Seja qual for o critério preferido para a distinção entre liberdades e direitos, não se descortina facilmente como será possível chamar direito subjectivo à faculdade, que a lei reconhece às pessoas, de não responderem a perguntas sobre as suas convicções religiosas.
Se as pessoas não pudessem ser interrogadas por terceiros ou pelas entidades públicas acerca dessa matéria, e os interrogantes praticassem, por conseguinte, um verdadeiro acto ilícito, sempre que fosse violada a proibição legal, ainda com alguma propriedade se poderia falar de um direito dos indivíduos a não serem interrogados em matéria de religião.
Mas tão longe, avisadamente, não quis ir o projecto.
A sua real intenção é a de consagrar um puro agere licere, para significar, por outras palavras, que não pratica nenhum acto ilícito a pessoa que se recuse a responder a perguntas acerca da religião que professa ou sobre se professa alguma.
Do direito discriminado na alínea e), o menos que pode dizer-se, por sua vez, é que se trata de uma faculdade definida em termos bastante equívocos. Dir-se-ia, em face da forma como o preceito se encontra redigido, que o Estado se propõe garantir a assistência religiosa aos fiéis a quem os ministros do culto se recusem a prestá-la. O católico teria direito a receber os sacramentos, ainda que o respectivo pároco, por exemplo, entendesse que os não devia ministrar.
E não é essa, positivamente, a intenção do projecto.
O que neste se pretende consagrar, pela certa, é a ideia de que se deve facultar às pessoas a possibilidade de receberem a assistência religiosa pelos ministros da sua crença - quando estes, é evidente, se disponham a prestá-la.
Supõe a Câmara, no entanto, que a ideia pode ser levada mais longe, em obediência ao tal valor social positivo da religião, afirmando-se, quanto aos principais destinatários da norma (o Estado e as empresas), que não só lhes
156 A dignidade da pessoa humana a que a declaração conciliar se reporta é a que tem as suas raízes na própria Revelação Divina (cf. n.º 9 da Dignitatis Humanae).
157 A questão tem não só interesse teórico, mas também alguma importância prática. Pode, com efeito, a lei facultar a livre opção das pessoas em matéria de religião, mas entender ao mesmo tempo que, uma vez efectuada essa opção (directamente ou por intermédio da autoridade familiar competente, v. g., mediante o baptismo), a pessoa não goza da liberdade de praticar certos actos condenados pela religião em que professa, enquanto dela não abjurar.
É este, aliás, o regime em certos aspectos vigente no país vizinho, onde os católicos (baptizados não podem celebrar casamento civil sem previamente terem abjurado da sua fé (cf. artigo 42. ° do Código Civil Espanhol) e onde ainda agora a Lei de 28 de Junho de 1967 sobre a liberdade religiosa só permite que não assistam aos actos de culto celebrados nas forças armadas aqueles que, ao ingressar nelas, façam constar a sua acatolicidad (artigo 5. °, n.º 2).
Quanto ao simples abandono da confissão religiosa, também o n.º 3 do artigo 32. ° da mesma lei exige para ele a prova do ter sido comunicado ao ministro competente da religião abandonada.
158 Cf. S. Berlingò, est. cit., pp. 6 e segs. O autor aborda neste estudo as dificuldades mais sérias que pode levantar a faculdade do abandono da confissão religiosa, quando usada já não pelos simples leigos, mas pelos ministros do culto católico (padres apóstatas, por exemplo), em face da Concordata da Santa Sé com a Itália (artigo 5.°, III).
Advirta-se também que o facto de a lei admitir a livre mudança de credo religioso não arrasta como consequência necessária o dever consentir-se na dissolubilidade do vínculo contraído por aqueles que casaram católicamente. Além de outras razões, cumpre notar que no primeiro caso estão em jogo puros interesses individuais, enquanto no segundo estão em causa, não só o interesse de ambos os cônjuges e dos filhos, mas a estabilidade e a dignidade de todas as outras uniões sacramentais, que a admissibilidade do divórcio imediatamente atingiria.
Os argumentos que, quer lá fora, quer entre nós, têm sido extraídos do princípio da liberdade religiosa, ou da doutrina conciliar em geral, contra a regra da indissolubilidade do casamento católico, que o Santo Padre repetidas vezes tem defendido com bastante veemência, são minuciosamente analisados e refutados pelo Dr. António Leite no estudo sobre "Liberdade religiosa e divórcio", publicado na Brotéria, 86, pp. 749 e segs.