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8 DE JANEIRO DE 1948 97

O Sr. Mendes de Matos: - Quando apresentei à Assembleia o meu aviso prévio sobre o comércio retalhista de vinhos e outras bebidas alcoólicas e seus reflexos na vida nacional tive a impressão de que alguns dos Srs. Deputados que se dignaram honrar-me com a sua atenção se sentiram tocados de surpresa, porventura de dúvida, acerca da verdade dos fundamentos com que justifiquei a sua apresentação.
Confesso que me não surpreendeu essa surpresa. Eu mesmo a sentira antes, talvez mais viva e mais profunda ainda.
Desde a minha entrada nesta Assembleia que médicos, professores o párocos se me dirigiam, pedindo, com renovada instância, que chamasse a atenção do Governo para os estragos e ruínas que, em vastas zonas populacionais, a indisciplina com que se exerce o comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas estava amontoando com as mais graves e perturbadoras consequências.
Aquelas pessoas são, pelas funções que exercem e pela probidade moral de que se revestem, as mais qualificadas para observarem, compreenderem e exporem os factos constantes das informações que me enviavam.
Esses factos eram, porém, de uma natureza tão grave e de projecção tão nefasta que o meu espírito foi tentado a uma reserva na sua aceitação incondicional. Breve me foi dado reconhecer, por observação pessoal, que a realidade, dura e crua, excedia tudo quanto me havia sido comunicado.
Não eram apenas numerosas famílias que se desagregavam numa decomposição total, freguesias inteiras que resvalavam no abismo de fundas degradações; vastas zonas populacionais, das mais sadias e fortes do País, estavam perdendo muitos dos seus melhores valores e caindo em desoladora indisciplina de costumes, em pavorosa desordem social.
Estávamos, pois, em face de um problema nacional, que se me afigurou de extrema gravidade e que exigia solução rápida, antes que se perdessem muitos dos valores em perigo e mesmo muito do que a Revolução Nacional tem realizado à custa de grandes sacrifícios, a fim de se poder prosseguir na obra de recuperação histórica em que o Governo seriamente se empenhou.
Foi então que decidi, no cumprimento do dever de colaboração com os órgãos do Poder, trazer a esta Assembleia o aviso prévio sobre o comércio de vinhos o outras bebidas alcoólicas a retalho e seus reflexos na vida nacional, a fim de atalhar os males que está causando e corrigir as ruínas que já estão amontoadas.
Poderia fazê-lo num discurso mais ou menos estatístico, mais ou menos patético, que para tanto não faltava a matéria-prima. Prefiro, porém, seguir pari passu, o articulado com que fundamentei a sua apresentação.
Por esta maneira ganhará o assunto em clareza e verdade, que é e que sobretudo importa na oratória desta Assembleia.
O primeiro fundamento com que justifiquei o meu aviso prévio foi:
I.- O comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas a retalho; como está sendo exercido é contrário às leis vigentes, que são transgredidas sem fiscalização ou sanção.
Na verdade, assim é. O comércio de vinhos e outras bebidas alcoólicas a retalho como está sendo exercido caracteriza-se por três ilimitações: ilimitação no tempo, ilimitação nos meios e ilimitação no espaço.
Os estabelecimentos de venda de vinhos funcionam nos sete dias da semana, em numerosos casos com dezassete horas de trabalho diário, quase numa actividade contínua. Todos eles funcionam com uma nefasta indisciplina de negócios e de costumes dos frequentadores; multiplicam-se por toda a parte, numa proliferação a que obstáculo algum parece pôr limite.
Ora esta tríplice ilimitação é contrária às leis em vigor.
Comecemos pela ilimitação do tempo:
O Estatuto do Trabalho Nacional diz textualmente: «O trabalhador da agricultura, indústria e comércio tem direito a um dia de descanso por semana, que só excepcionalmente e por motivos fundamentados pode deixar de ser o domingo».
A letra é clara, categórica, insofismável: o dia de descanso semanal é, para as actividades produtivas, o domingo. Só excepcionalmente e por motivos fundamentados pode deixar de ser nesse dia.
Excepcionalmente entendem-se os casos esporádicos, isolados, que circunstâncias ocasionais criem ou imponham; por motivos fundamentados os casos de todas as actividades que por sua natureza ou por interesse comum não possam adiar-se ou antecipar-se e o interesse comum. Três reservas, pois, faz a lei: casos excepcionais, justificados em motivos fundamentados e de interesse comum.
Parece-me que a ilimitação do horário das casas de venda do vinho não pode incluir-se em nenhuma delas.
Não constitui uma excepção, porque se tornou um caso normal; não se baseia em motivos fundamentados, porque não constitui, por natureza, uma actividade contínua; não interessa ao bem comum, pois que, ao contrário, o bem comum exige o rigoroso cumprimento da lei, visto os altos valores nacionais que ela se destina a defender o assegurar.
Ora se assim é, eu pergunto, Sr. Presidente: porque é que se consente este horário de trabalho? Consente-se porque o decreto n.° 24:402, de 24 de Agosto de 1934, concede às tabernas esse privilégio. Quer dizer: por este decreto as tabernas podem, na verdade, funcionar ao domingo e funcionam. O que está em causa neste momento é o valor jurídico e o valor social dessa isenção. E eu digo que o valor jurídico e o valor desse privilégio não são subsistentes. Porquê? Por uma razão fundamental. Não quero demonstrar a esta Assembleia a exigência do descanso semanal, à face da moral e da higiene, porque é a própria lei que o afirma e creio que ninguém o contesta. O descanso semanal é na verdade uma exigência da pessoa humana, porque interessa à sua conservação e à sua própria dignidade. Há pois que respeitá-la em presença da letra da Constituição.
Mas que verificamos nós? Verificamos que na prática numerosas pessoas são impedidas do gozo desse descanso, como acontece a todos aqueles mercenários que trabalham nas tabernas.
Mas há mais ainda. Esta isenção concedida às tabernas contraria os propósitos e intenções do próprio legislador.
O próprio autor do referido decreto o afirma claramente no relatório que o precede: «nada justifica a sua inobservância, nem razões de ordem económica, nem razões de ordem social», condena o «triste espectáculo que continuamente se tem oferecido, sobretudo no âmbito das grandes cidades, deixando trabalhar ao domingo a construção civil e outros serviços de importância», e conclui que «o que é em todos os casos necessário é pôr termo aos abusos verificados no horário do trabalho».
O legislador quis assegurar a prevalência do social sobre o económico, tornar mais certo e eficiente o descanso semanal para todos os trabalhadores. Por isso afirma categoricamente:

Nada justifica a inobservância do descanso semanal, nem razões de ordem económica, nem motivos de ordem social.

Mas a única razão que se invoca a justificar a abertura das tabernas ao domingo é o interesse dos vinhateiros e dos taberneiros - razão que o autor da lei declara improcedente.