19 DE JANEIRO DE 1951 283
O Orador: - É uma pura amabilidade de V. Ex.ª
Nós estamos aqui num sentido tão lusíada, trio português, que muitos dos que possuem a opinião política de V. Ex.ª guardam-na no seu íntimo e põem acima dela a imagem da Nação.
Felicito novamente o orador que abriu este debate, e afinal de contas, pela sequência dos apartes, vemos que todos estamos de acordo.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Mendes Correia: - Sr. Presidente: a questão que o Sr. Prof. Jacinto Ferreira trouxe à consideração da Assembleia Nacional e do Governo é das que transcendem o plano das soluções simples e imediatas, porque envolve uma larga, demorada e profunda tarefa de renovação da mentalidade portuguesa e até dos nossos costumes.
Não me parece que o problema se resolva distribuindo a uns centos de desempregados intelectuais as acumulações de que S. Ex.ª nos falou.
Certamente alguma coisa se poderá fazer de repente para facilitar o acesso de desempregados competentes a quadros e serviços públicos. Mas tudo isso .será uma gota de água para o maré magnum dos que continuarão sem emprego.
Referir-me-ei entretanto de modo particular à situação de intelectuais altamente especializados que, chamados pelo Estado a funções de especialização igualmente elevada, encontram, por entre a indiferença ou até o despeito alheio, a maior instabilidade, a maior descontinuidade nos seus contratos de prestação de serviços.
Assim os jovens investigadores são tratados como assalariados ao sabor de qualquer capricho superior ou do qualquer mudança de intenções governativas, não recebendo frequentemente qualquer garantia ou estímulo - indispensáveis à continuidade e eficiência do seu labor - da parte do Estado ou das entidades que utilizam os seus serviços.
Exijam-se-lhes responsabilidades, mediante os juízos de quem tenha competência para apreciar tecnicamente o seu trabalho e orientar até o seu esforço. Mas não se faça da sua carreira uma aventura perigosa para quem a tenta e mau incentivo pura que surjam os homens de escol que prossigam, na sua tarefa.
Quando todo o progresso das nações assenta sobretudo na cultura e na investigação, damos às vezes a impressão de que, entre nós, tudo - os responsáveis, o meio - é hostil a esta, que tão necessária - direi mesmo vital- é na metrópole como num vasto e magnífico ultramar, do qual ainda se desconhecem tantas riquezas naturais e humanas!
E o triste é que para várias pesquisas se têm contratado estrangeiros, quando não faltavam no País nacionais com idoneidade pelo menos igual para a tarefa desejada. E qual é o prémio, qual é o estimulo que se dá, por exemplo, ao pessoal científico ou técnico de Universidades e laboratórios (como naturalistas, conservadores, preparadores, etc.), que, sem acesso, sem promoção, não possui direito a uma justa diuturnidade? Está certo que valores por vezes intensamente especializados fiquem toda a vida, em matéria de retribuição, a marcar passo?
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Mas passemos adiante. Como íamos dizendo logo de começo, o problema do desemprego nos intelectuais não se extingue com soluções simples e parcelares.
É necessária uma ampla e funda transformação da nossa mentalidade e até dos nossos costumes. Em que sentido? No de considerarmos as, nossas escolas e Universidades não como simples instrumentos da emprego-mania nacional, mas, sobretudo, como centros de difusão cultural e de investigação, do modo que aos que as frequentem importe mais obterem efectivamente a cultura, a preparação que elas fornecem, do que a posse de um diploma, como é infelizmente o caso corrente.
Quantos são, nesses estabelecimentos, os alunos que desejam realmente aprender, cultivar-se e adestrar-se, perante os que desejam apenas as aprovações em série nos exames para a aquisição final do diploma?
Ninguém ignora que não só este, muitas vezes, não corresponde a uma cultura e preparação reais, como também constitui, como já disse um dia nesta Assembleia, um papel que o seu possuidor passa a vida inteira a brandir triunfantemente como estandarte de direitos a situações cada vez melhores, como se a actividade de cada um através da existência não fosse um concurso de provas públicas mais significativo, mais valioso, do que todos os exames e diplomas.
Longe do mini a ideia de que entro os desempregados intelectuais não há muitos de real valor e competência indiscutível! Mas quantos outros são nos seus sectores lamentáveis nulidades que a teimosia de famílias apostadas em fazer dos filhos doutores e a demasiada indulgência ou a fraca bitola das exigências de júris benévolos arrastaram, mais ou menos dificilmente, a um diploma que não encobre a profunda incapacidade do seu portador?!...
Dir-me-ão que a culpa ó das escolas ou dos Governos, que as não organizam de modo mais eficiente. Seja assim. Mas a tarefa não é tão simples como parece. Toda a gente, entre nós, considera as escolas e as Universidades como, acima de tudo, fábricas de diplomas. Pensa-se mais nestes e nos exames do que no conteúdo real do ensino.
Levantam-se mais clamores contra a severidade nos exames ou contra as exigências nos programas do que contra as deficiências reais de cultura e de preparação.
Seria de curiosos resultados submeter todos os desempregados e até os ... empregados a provas verdadeiramente significativas da capacidade respectiva. Há alguém, neste país, que duvide da multidão de incompetentes que enxameiam nos serviços públicos e até nos particulares? Se se fizesse uma justa selecção, os actuais desempregados que fossem autenticamente idóneos encontrariam talvez lugares a mais.
A propósito, devo dizer que tive sempre imensa pena dos bons funcionários, porque ganham o mesmo que os maus da correspondente categoria e são as verdadeiras vítimas, pois todas as incumbências de responsabilidade, todas as tarefas graves e difíceis lhes são confiadas, e não aos colegas incompetentes ou pouco cumpridores.
Enquanto os bons trabalham, os maus levam boa vida, ninguém os incomoda e... ganham o mesmo.
Vozes: - Muito bem, muito bem!
O Orador: - Também devo dizer que as candidaturas se amontoam, sobretudo relativamente a certos cargos, especialmente aos de carácter burocrático. Não raras vezes há no nosso ultramar vagas muito tempo em aberto, possibilidades de colocação que ninguém aproveita.
O nosso diplomado prefere geralmente as tardes no Chiado ou na Avenida da Liberdade há que reconhecer o seu gosto e, sobretudo, o seu instinto de comodismo e inércia) à vida activa, enérgica, fecunda, nessas longínquas terras portuguesas, em que verdadeiras riquezas esperam quem as desenvolva e até quem as descubra.