O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Não foi possivel carregar a página pretendida. Reportar Erro

874 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 99

A resposta depende, como é óbvio, de uma noção precisa desse ideal. Como alcançá-la?
O problema das relações entre o Estado e a Igreja Católica, ou entre os dois poderes, religioso e secular, pode dizer-se crucial na história da civilização cristã.
A primeira dificuldade que ele levanta é obter a seu respeito ideias precisas e claras. Não as poderá ter quem não distinguir cautelosamente o ideal doutrinário da expressão jurídica, que foi encontrando nos textos das leis ou das convenções, e bem assim das realidades que vieram a corresponder-lhe na vida pública dás nações a que as mesmas leis ou convenções diziam respeito.
Se os textos jurídicos muita vez ficaram longe do ideal doutrinário, mais frequentemente ainda as realidades se afastaram da doutrina contida nos textos. E o próprio ideal doutrinário se viu sujeito, nos autores que dele se ocuparam, à influência de muitos interesses humanos, de correntes escolares em que uma apaixonada emulação tinha maior peso, do que a pureza da doutrina, e até algumas vezes de disputas mais preocupadas com a expressão formularia do que com a essência do seu conteúdo real.
Seria fácil provar todos estes desvios com erudito arsenal de citações, se estas não pudessem julgar-se menos acomodadas à índole desta tribuna.
Bastaria recordar as situações verificadas nos dois séculos da nossa história, decorridos de 1750 a 1950, para encontrar provas bastantes do que afirmei. Mas esta mesma retrovisão de dois séculos nos levaria muito longe, sem um grande interesse para o esclarecimento da proposta em discussão, bastando-nos para o efeito recordar os quatro regimes verificados, de facto, nos últimos cinquenta anos e a que já aludi no começo das minhas considerações.
Também não vou embrenhar-me no labirinto dos autores que se tom ocupado deste problema e, não podendo, como leigo e simples curioso nestas matérias, arrogar-
me autoridade que não possuo, limito-me a esclarecer a Assembleia com as palavras que textualmente copiei de duas memoráveis encíclicas desse grande luminar da Igreja Católica que foi o Papa Leão XIII e nas quais, a meu ver, foi condensada a fórmula doutrinal esclarecedora e decisiva deste magno problema.
Apoiados.
Em 1881 Leão XIII decidiu tomar a defesa do poder secular ou poder civil contra a insurreição social assoprada pelas seitas comunistas e anarquistas que ensaiavam por esse tempo as suas primeiras investidas.
Nesse propósito, Leão XIII afirmou, na encíclica Diuturnum, o valor social e a independência do poder civil nestes termos:

Seguramente a Igreja não pode ser suspeita aos príncipes nem odiosa aos povos. Convida aqueles a trilharem o caminho da justiça e a não se desviarem do seu dever e, por muitas razões, fortalece e sustenta a sua autoridade. Ela -a Igreja- reconhece e declara que tudo quanto respeita à ordem civil está debaixo do poder da suprema autoridade deles; nas coisas cujo julgamento, por diversas causas, pertence ao poder religioso e ao poder secular ela quer que exista um acordo, em virtude do qual se evitem muitas questões funestas para os dois poderes.

Encontra-se aqui claramente afirmada a independência e suprema autoridade do poder secular na sua esfera própria; mas, quatro anos depois, em 1885, Leão XIII versou mais directamente o problema na encíclica Imortale Dei, sobre a constituição cristã dos estados.

Nesta se lê o seguinte:

Deus dividiu o governo do género humano em dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; o primeiro para as coisas divinas, o segundo para as coisas humanas. Cada um deles no seu género é soberano; cada um se contém nos limites perfeitamente determinados e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada um exerce a sua acção por direito próprio ...

Afirma-se, portanto, neste passo a soberania dos dois poderes e a circunscrição ou separação das duas esferas, em que cada um deles exerce a sua acção por direito próprio.
Há, porém, uma terceira esfera: a das coisas ou questões mistas, em que -diz ainda Leão XIII- «uma e a mesma coisa, ainda que com um título e razão diferente, mas sempre uma e a mesma coisa, esteja sujeita à jurisdição e ao juízo de um e outro poder».
Qual deve ser nesta terceira esfera o sistema de relações? O de concórdia entre os dois poderes. Mas concórdia estabelecida por que meios?
Leão XIII prevê dois: um, em que a destrinça da jurisdição atribuível a cada um dos dois poderes se faria atendendo em cada caso u natureza e ao fim das coisas humanas em causa, competindo à jurisdição da Igreja tudo que nelas respeitar à salvação das almas e ao culto de Deus, pois «enquanto às outras coisas - palavras da encíclica-, de que a ordem civil e política trata, é justo que fiquem sujeitas à autoridade civil, porque Jesus Cristo ordenou se desse a César o que é de César e a Deus o que é de Deus».
Um outro modo previsto por Leão XIII de assegurar a concórdia e garantir a paz e a liberdade na esfera das coisas mistas é o de acordos ou tratados entre os Chefes de Estado e os Soberanos Pontífices sobre qualquer ponto particular.
Foi este o modo a que Pio XI veio a dar preferência, através das treze concordatas concluídas durante o seu glorioso pontificado, e o adoptado pelo Estado Novo pela Concordata de 1940, entre o Chefe do Estado e Pio XII.
Afastam-se, pois, do ideal doutrinário, claramente indicado por Leão XIII, tanto o cesaro-papismo das velhas monarquias absolutas, como o regalismo opressor da nassa velha Carta Constitucional, como a separação laicizadora de 1911, como qualquer ideia de condenável ou abusivo clericalismo ...
Se a separação laicizadora de 1911 foi expressamente condenada por Pio X, à face da doutrina, são igualmente condenáveis o cesaro-papismo e o regalismo, que a Igreja tolerou, mas jamais puderam merecer a sua aprovação.
E a fórmula «união moral» que se lê nos autores antigos não pode nem deve entender-se no sentido de confusão de poderes ou de esferas de acção; não é união nos meios, mas nos fins, enquanto os dois poderes, independentes e agindo por direito próprio nas respectivas esferas, colaboram para o bem comum dos componentes de uma sociedade ou nação.
O que a doutrina condena é uma separação agressiva, a separação laicizadora ou meramente tolerante de uma Igreja encadeada, mas não a separação de poderes e de esferas de acção, a separação concordatária e colaborante. Esta pode praticamente aproximar-se, mais do que qualquer outra, do ideal doutrinário.
Como disse há pouco, importa distinguir cautelosamente a expressão jurídica de um regime das realidades que lhe correspondem, e não tenho dúvidas em afirmar