4 DE MARÇO DE 1932 391
curso, se é necessário rodear o terreno encravado: prejuízos dificilmente compensados pela indemnização que a lei manda pagar em caso de servidão a constituir judicialmente.
Os donos de pequenos retalhos encravados, que frequentemente se sucedem contínuos, cada um serviente do seguinte e dominante do anterior, vêem, não raro, cerceada a sua iniciativa, agrícola. Não fazem a cultura que mais conviria, mas a imposta por vizinhos rotineiros, ou têm todos de se sujeitar à execução concertada e simultânea de idênticas operações. Assim sucederá quando a liberdade de movimentos de uns fosse afectar os outros, porque, por exemplo, este queria colher antes daquele, e isso forçava o primeiro a atravessar com carro e material o campo semeado do segundo, prejudicando-o pela estreiteza da serventia. Refere a este propósito o engenheiro agrónomo Castro Caldas 1 que na freguesia de Lindoso ainda se observa uma disposição, editada em 1850 pela Câmara Municipal de, Ponte da Barca, cominando a imposição de multas aos que «não sementarem ou ceifarem o centeio nas propriedades tapadas em comum, no dia em que a maior parte dos compossuidores concordarem».
Os inconvenientes não são apenas de ordem económica, situam-se também no domínio social. A interpenetração de prédios minúsculos, com a proximidade da vizinhança e as dificuldades de demarcações, e sobretudo o encravamento, com a servidão que impõe aos terrenos contíguos, criam amiúde um estado tenso de espírito que deflagra em desavenças, senão mesmo em rixas ou em litígios judiciais. O adquirente de uma diminuta gleba, por partilha ou a outro título, experimenta a legítima satisfação da posse, mas quantas vezes essa satisfação não torna mais amargo o desgosto da perda se a insuficiência económica da gleba força a vendê-la ou a abandoná-la à usura e a trocar a condição ilusória de proprietário pela única de proletário rural ou citadino ou pela de emigrado.
Todos os males assinalados, à excepção deste último, são comuns à propriedade dispersa, como unidade económica repartida geogràficamente por diferentes parcelas de diminutas proporções. Aí, como no caso de prédios encravados, o prejuízo material, além de afectar á economia da Nação, agrava directamente o proprietário, que, sem aumento da superfície total, teria na sua mão um valor muito mais importante se todos os pequenos fragmentos, disseminados estivessem reunidos numa propriedade contínua.
A propriedade dispersa tem ainda um inconveniente específico, determinado pela necessidade de conduzir uma exploração agrícola unitária sobre glebas separadas. As que mais longe ficam do centro de exploração ressentem-se não raro da distância e as caminhadas que há a vencer entre elas originam consideráveis perdas de tempo, fatigam pessoal e gado, dificultam a utilização das alfaias, forçadas a frequentes deslocações.
Experiências realizadas em França no ano de 1921 levaram a conclusões como a seguinte: feita a cultura de trigo, depois de um período de pousio, numa gleba de 1 hectare, em três glebas com um terço desta área, distanciadas de 500 metros, e em seis glebas com um sexto da mesma superfície, distanciadas de 300 metros, a dita cultura importou em 375 francos no primeiro caso, 473 no segundo e 639 no terceiro 2.
Tudo isto força a considerar o problema e a buscar-lhe, prudentemente, as soluções adequadas.
Mas a questão tem ainda outro dado, de natureza anais filosófica, que igualmente não pode ser esquecido: o fundamento e a função da propriedade privada.
Digamos também algumas palavras a, osso respeito.
A propriedade privada como instituição de Direito Natural O lado individual e o lado social dessa instituição
8. A propriedade privada obedece ao instinto de apropriação que todos nós temos; realiza-o e disciplina-o. Além disso representa, de modo directo ou indirecto, o fruto do trabalho, a condensação material de esforços e canseiras.
A terra produz o necessário à vida, anãs sem o cultivo e os cuidados dos homens não poderia fornece-lo. Braços humanos desbravaram-na e, de estéril, tornaram-na frutuosa. Esses foram os primeiros a adquirir direito à propriedade, como paga do suor com que regaram e fecundaram o solo.
Mesmo depois de repartida a terra, no trabalho se funda a propriedade, porque com ele se alcançam, os meios de vida, que se empregam na aquisição de bens de consumo e, quanto ao excesso, se o houver, na aquisição de bens produtivos, fonte de novas riquezas.
A propriedade privada, satisfação de um instinto fundamental e legítimo prémio do esforço individual, não poderia ser negada sem violência para a condição humana e sem ofensa da ideia de justiça.
Na mesma Natureza se encontra, pois, o fundamento da propriedade privada, verdadeira instituição de Direito Natural, intangível na sua existência.
Mas nessa forma de propriedade há dois lados - um individual e outro social -, porque ela não visa só o interesse do proprietário, serve igualmente o bem comum. O domínio particular é outorgado pela Natureza para que cada um satisfaça as necessidades próprias e de sua família, mas também para que através dessa instituição se realize o interesse geral.
Daqui a necessidade e a legitimidade de deveres e limites impostos ao domínio, restrições a estabelecer concretamente pelo legislador.
Na determinação, porém, desses limites e deveres faz-se mister que a autoridade pública actue com a maior prudência, olhos fixos na real natureza das coisas, no que esta tem de constante ou acidental, e nas exigências supremas do bem comum.
Só se devem decretar as restrições fortemente reclamadas pela conveniência social.
A propriedade é um dos redutos principais da liberdade, e esta não pode legitimamente sofrer sacrifícios maiores do que os exigidos de forma imperativa pêlos interesses superiores da comunidade.
Da ideia de função social do domínio não deve tirar-se predisposição a admitir limites exagerados. Contra isso reage o lado individual da instituição, que importa não esquecer: «Enganam-se ou erram os que pretendem reduzir o carácter individual do domínio, a ponto de o abolir na prática 1.
E importa não esquecer também que a primazia nem sempre cabe de direito aos interesses económicos. O incremento da produção nacional é importantíssimo, mas não poderia sacrificar-se-lhe tudo, com menosprezo de sentimentos, afectos e outras razões de ordem individual ou social, sob pena de se resvalar no materialismo. O homem não é um puro ser económico: é também espírito e alma.
1 Inquérito à Habitação Rural, dirigido pelos Profs. Lima Bastos e Henriques de Barros, vol. I pp. 87-88.
2 Le Remembrement de la Propriété Rurale (Publications de la Fédération Nationale des Collectivités d'Electrification et d'Améliorations Rurales), cit. Por Dr. Pina Manique, «A Fragmentação da Propriedade Rústica», nos Anais do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, vol. III, p. 87.
1 Quadragésimo Anno, II.