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376 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 183

para lhe evitar os desmandos, com a timidez dos que, pela coacção da camaradagem, não saem a tomar-lhe o passo, e que de tudo isto faz anuas e força para abrir brecha nos espíritos, para nos derrancar moralmente, para achincalhar quanto nos acostumámos a respeitar sem subserviência, lançando sobre quantas coisas veneramos a velatura da sua pobre capa de falsa erudição e a reputação do seu nome de escritor.
Atitude mesquinha, que não toma os homens e os factos na sua correlação temporal, não os situa na vida e na ideologia do seu tempo e apenas os contempla através dos remendos furta-cores dessa pobre capa que o tempo e a análise criticamente séria há muito pôs de banda como partos de espíritos escandecidos pelos preconceitos de partido e de seita.
Eu repito que tudo isto é grave, e tanto mais quanto é certo que a nossa triste condescendência já se tem manifestado em patrocínio oficial e oficioso.
Nós todos somos grandemente culpados de que estas coisas sejam possíveis, porque não definimos uma larga, esclarecida e atenta política do espírito e não tomámos As precauções e as medidas atinentes a que os nossos centros e organismos de cultura exprimissem as realidades autênticas da nossa comparticipação no surto geral da cultura contemporânea, e se erguessem os postos de observação que mostrassem os caminhos errados e marcassem as directrizes verdadeiras.
Fará além dos eruditos e dos estudiosos há uma corte numerosíssima de pessoas ansiosas de saber e conhecer aquilo que faz parte da mediana cultura geral de um povo, e nós nada temos na imprensa periódica, jornal, revista ou coisa parecida, onde os problemas da cultura geral do nosso tempo sejam rebatidos com espírito independente e onde a crítica com sabor objectivo, impessoal e cordata faça distinção entre o válido e o promissor, o subsistente e o precário.
Tenho presente no meu espírito um escritor - refiro-me ao Sr. Aquilino Ribeiro - a quem os pregoeiros de fama chamaram por aquele nome de mestre. Mestre de quê?
O porvir há-de ser forçosamente mais justo e mais pertinente do que certos juízos formulados no nosso tempo.
Quando se considera a carreira desse escritor ao longo duma vida literária que já não é pequena, domina-nos um sentimento amargo ao reconhecer que se frustraram há muito tempo as qualidades que os seus primeiros trabalhos revelaram, e que pareciam augurar à literatura portuguesa contemporânea a presença de alguém com personalidade e arcaboiço de autêntico novelista.
Infelizmente, o Sr. Aquilino Ribeiro ficou-se na promessa; não trouxe à novelística nacional nenhuma contribuição criadora do seu espírito. Já houve um crítico neste país que honradamente teve a coragem de lho dizer em relação aos seus trabalhos derradeiros de novelista. Mas aos outros críticos reputados se pede que nos elucidem sinceramente, a nós, os possidónios, que desejamos conhecer os rumos e inovações verdadeiramente fecundos que tal mestre trouxe à novelística nacional, e digam onde estão essas qualidades esplendentes do seu espírito e vigor intelectual.
Qual o livro, quais as páginas onde o mestre proclamado deu sentido novo e estrutura viva a obra que empreendeu, e afirmem uma compleição de verdadeiro romancista ou novelista?
Qual o livro, quais as páginas, que indiquem um surto realmente seu, iniludível de que essa forma e realização artística são originais e fecundos? Onde estão os caracteres e os tipos que possam valer intemporalmente e fora do nosso estreito âmbito regional?
Onde estão os discípulos que tenham bebido na sua lição o estímulo forte para prosseguir com seus métodos
novos nos caminhos propugnados com originalidade e seguir as normas excelentes afirmadas numa superior criação artística? Mestre de quê?
O escritor esgotou há muito o pouco cerne de fantasia criadora com que a Providência o dotou, consumiu integralmente as qualidades inatas de reconhecimento e transplantação dos caracteres rurais para a forma literária, e só ficou com uma coisa manancialmente poderosa: a riqueza vocabular que a sua frequência e origem serranas se lhe apegaram como grude à carne e à pena.
E doloroso reconhecer isto, e há-de sê-lo bem mais para quem não sente emurchecer o afã de escrever e a necessidade de comunicação com o público.
Daqui o rebuscar adrede a matéria novelesca para consumo quotidiano, exalçamento e reafirmação da sua ideologia de rubra pigmentação. Não, senhor, não, a história nacional não pode ser um motivo de divisão e de guerra civil nos espíritos.
Por mim, compreendo muito bem que não há um estalão mental, nem deve haver regras de aferição do pensar, mas a razão foi dado ao homem para a usar no gosto da virtude, da beleza e da justiça.
Ela nos obriga a profligar o mal, a condenar o erro e a infligir o castigo. A própria razão nos limita em nossa liberdade, nos adverte e responsabiliza. Fora disto não há verdadeira liberdade, só existe a licença de que o Sr. Aquilino Ribeiro tanto tem usado e abusado, com a condescendência geral e o aplauso de uns quantos seguidores em completa reverência.
A História pode ser, por sua própria natureza, matéria de abundante interesse novelesco. Certa feição do romance novecentista e o largo desenvolvimento moderno da chamada biografia romanceada aí estão para o documentar. Mas, entre os autores do século XIX e aqueles dos modernos que cultivaram esses géneros literários, a posteridade e a crítica sensata elegeram meia dúzia de nomes que correm mundo e são lidos onde quer que chegue a sua fama e obras.
O resto perdeu-se, como hão-de perder-se, sem grande prejuízo para o património intelectual do homem, todas as obras daqueles que não tiveram fineza de espírito para haurir dessa matéria historial aquilo que nela podia constituir lição de beleza de uma vida, de um acontecimento, de uma ideia, superiores à mesquinhez da vida quotidiana e às paixões do estrabismo partidário.
Não é com resquícios de leituras vagamente feitas, com citações de autores e obras conhecidas por acaso, com apreciações e modos de ver desde há muito ultrapassados, com fugazes lampejos de adivinhações, com preconceitos de escola e de educação que pode construir-se uma obra sólida, uma obra séria, uma obra digna. Se não chega o tempo, e é força viver, então trata-se de outra coisa, mas nunca de mestria, ainda que os vizinhos no-lo digam.
Menos se trata ainda de enfiar os coturnos de modelador literário, e alçado neles passar aos olhos, da incultura geral como riscador sábio de planos literários, mestre incontestado e inamovível em seu pedestal de papel passento.
Romancista, novelista, ensaísta, pedagogista, historiógrafo, mal vai a quem não sabe o que tais palavras significam em seu conteúdo vivo, em sua contextura plena e específica.
O nosso tempo - que desgraça ! - perdeu o sentido exacto de (muitas ideias superiores, e por isso as palavras já não contêm neste argouço moderno o que efectivamente significam para os bons espíritos.
Chama-se tudo a todos, só porque ameaçam de ser o que pressupõem: romancista porque elaborou uma fábula; ensaísta porque exprimiu uma ideia, sem a desfibrar e levar a cabo criticamente; pedagogista porque citou algum tratado ou método de educação; historio-